15 de março de 2017

TÓPICOS PARA UMA ESTRATÉGIA NACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS NA GUINÉ-BISSAU




Introito

Fomos convidados pelo Presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH) para escrever um artigo a ser publicado no presente número da Revista da organização. Sentimo-nos honrados não apenas pelo convite mas, sobretudo, pela oportunidade que nos foi oferecida de participar nesta importante actividade de promoção e reforço da protecção dos direitos humanos no nosso país.

A internacionalização dos direitos humanos em termos de tutela, monitoramento e da aplicação interna dos instrumentos internacionais na matéria, bem como a integração dos direitos como critério de cooperação entre os Estados, aliado à consolidação da ideia da sua universalidade, tem criado a impressão de que a questão dos direitos humanos interessam mais aos outros do que aos próprios nacionais.

Concretizemos: quando um país é sancionado por incumprimento dos direitos humanos, por exemplo, quando suspenso da organização de que é membro, ou vê reduzida, suspensa ou cancelada a ajuda pública ao desenvolvimento que lhe é destinada por causa da violação dos direitos humanos, fica a impressão de que o principal interessado no respeito pelos padrões internacionais na matéria é o autor das sanções ou a dita comunidade internacional. Nada mais errado! Quando a União Europeia (UE) sanciona a Guiné-Bissau por violação sistemática dos direitos humanos em violação do Acordo de Lomé entre a EU e os Estados África, Caraíbas e Pacífico, o objectivo imediato não é a defesa dos interesses da UE como organização ou dos cidadãos europeus. O que está em causa são os direitos dos guineenses, que foram violados de forma grave por quem deveria os promover e proteger. 

Cabe às autoridades guineenses promover e proteger os direitos dos seus cidadãos. A obrigação principal de promoção e protecção consta da Lei Magna nacional e não dos instrumentos internacionais ou dos acordos de cooperação. Os titulares de cargos políticos foram eleitos ou nomeados nos termos da referida Lei Magna e das leis internas, com um programa ou missão que não inclui a violação dos direitos humanos mas sim o seu respeito; a administração pública exerce poderes nos termos das leis internas que as obrigam a respeitar os direitos de todos; aos guineenses cabe, individualmente ou em conjunto, defender-se das violações dos seus direitos e respeitar, inclusive, ajudar a promover e proteger os direitos dos outros. 

A tutela internacional é meramente complementar, pelo que o accionamento de mecanismos internacionais significa que se falhou internamente em prejuízo dos guineenses e da Guiné-Bissau. Nos termos do sistema africano de promoção e protecção dos direitos humanos, ancorado na concepção africana de direito da sociedade tradicional africana, de base comunitária, em detrimento da concepção ocidental, de base individualista, a obrigação do indivíduo de participar na promoção e sacrificar-se mesmo em nome do interesse colectivo é maior. Deveria decorrer desse conceito a obrigação ainda maior por parte das autoridades e dos titulares de cargos políticos de se sacrificarem, inclusive a nível pessoal, em nome da colectividade a que pertencem e têm a obrigação de proteger.

Nesta senda de responsabilidade individual de contribuir para que os meus direitos e o dos outros sejam respeitados, vem as presentes linhas, que se articulam a volta da necessidade de definição clara de uma Estratégia Nacional para os Direitos Humanos, que servirá de veículo para uma definição clara de Políticas públicas no domínio dos direitos humanos, a integração sistemática dos direitos humanos nos programas de governo, bem como a criação de um mecanismo nacional de monitorização e avaliação, com a participação da sociedade civil e das autoridades tradicionais na elaboração da Estratégia, na definição de Política Pública para o sector e no seu monitoramento e avaliação.

Pensamos que a situação prevalecente de dispersão de instrumentos e de programas nacionais e internacionais no sector faz perder a ideia do conjunto e dilui responsabilidades quer pelo sucesso quer pelo insucesso na promoção e protecção dos direitos humanos. E se é evidente a necessidade de uma política única e coordenada, naturalmente ganha corpo, com a mesma urgência, a necessidade uma verdadeira autoridade nacional dos direitos humanos.

Fizemos a opção de não citar as disposições legais nacionais e internacionais mesmo quando os instrumentos são identificados, porque o objetivo não é produzir um artigo académico, mas sim lançar pistas de reflexão para os diferentes interessados e actores do sistema.

Monitorização internacional dos Direitos Humanos

Quer por força da sua Constituição, quer por força de acordos internacionais de que é parte, a Guiné-Bissau está vinculada no plano internacional geral, continental e regional aos principais instrumentos dos direitos humanos, que compõem o que alguns chamam de Carta Internacional dos Direitos Humanos. Esses instrumentos internacionais têm mecanismos periódicos de monitorização e avaliação internacional, nomeadamente as avaliações periódicas por via de Relatórios que os Estados partes submetem ou por via de mecanismos especiais.

A nível do sistema das Nações Unidas, a Guiné-Bissau apresentou o seu segundo Relatório em 2015, não se registando nenhum Relatório no sistema africano de avaliação periódica. Esse vazio amputa o país da possibilidade de comparar ambas as avaliações e ter uma ideia de eventuais diferenças de perspectivas sobre as mesmas matérias.

Refira-se que os Relatórios periódicos são um instrumento de diálogo formal, estruturado e concentrado no qual participam os Estados membros, os profissionais independentes, organizações não-governamentais do sector e os órgãos competentes dos instrumentos ou das organizações concernentes. São analisados e discutidos com as autoridades competentes do país e produzidas as observações e respectivas recomendações.

Com efeito, abundam as observações e recomendações diversas produzidas por diferentes estruturas e organizações internacionais sobre a Guiné-Bissau em matéria dos direitos humanos no quadro de avaliações periódicas ou pontuais, ou ainda no quadro de mediações ou monitoramento de conflitos diversos que o país tem vivido. 

A nível nacional, documentos diversos sobre a situação dos direitos humanos são produzidos por ONG’s, em particular a LGDH, representações de organismos internacionais e as próprias entidades públicas, sem contar com as reflexões académicas diversas e os Relatórios de alguns países como o Departamento de Estado dos EUA.


Estratégia Nacional para a Promoção e Protecção dos Direitos Humanos
Apesar de os direitos humanos serem universais, a sua promoção e protecção é essencialmente nacional, a cargo principal do Estado. O cumprimento das obrigações do Estado em matéria dos direitos humanos decorrentes dos compromissos internacionais ou internos, requer a elaboração e aprovação de uma estratégia nacional, que podemos chamar de uma Estratégia Nacional para a Promoção e Protecção dos Direitos Humanos (ENDH). É verdade que o Decreto n.º 6/2009 que criou a Comissão Nacional para os Direitos Humanos (CNDH) prevê um Plano Nacional de Acção para os Direitos Humanos mas não diz quem o elabora e como é elaborado.

Com efeito, pensamos que as observações, recomendações, estudos e relatórios diversos produzidas a nível internacional e nacional sobre o sector dos direitos humanos na Guiné-Bissau são suficientemente abrangentes e densos em termos de informações para servirem de base para a elaboração da ENDH. Com a participação da sociedade civil, do poder tradicional e das entidades públicas concernentes, a ENDH seria elaborada pela estrutura nacional responsável pelos direitos humanos e submetida a aprovação ao mais alto nível (Governo, Assembleia Nacional Popular e Presidência da República).

Refira-se que o país já conta com estratégias ou planos nacionais nos diferentes sectores, nomeadamente saúde, educação, mulher e criança. Todos eles entroncam com a questão dos direitos humanos mas carecem de uma coordenação eficaz e focalizada na melhoria das condições de exercício individual e/ou colectivo dos direitos inerentes. Por exemplo, para uma garantia efectiva do acesso à educação, à saúde, bem da promoção do género, é preciso saber o que dizem as observações e recomendações nacionais e internacionais sobre o respeito pela Guiné-Bissau das suas obrigações na matéria. 

A existência de ENDH iria ajudar a reduzir mudanças frequentes de orientações decorrentes de mudanças de governo ou alternância no poder. E isso é tão pertinente quanto a frequência com que os governos mudam no nosso país e as causas dessas mudanças tendem a implicar mudanças de orientação e variação do nível de compromisso com certos resultados ou prioridades.

Políticas públicas para os direitos humanos

O conceito de políticas públicas pode ser resumido a um conjunto de acções mais ou menos coordenadas levadas a cabo pelas entidades públicas, de forma directa ou indirecta, com vista a atingir um determinado resultado em benefício dos cidadãos.

Por este conceito, não podemos dizer que não existe na Guiné-Bissau políticas públicas, no sentido lato do termo, no sector dos direitos humanos. Existem acções, com maior ou menor coordenação e consistência que visam melhorar o exercício ou gozo dos direitos humanos pelas pessoas no nosso país. O Decreto n.º 6/2009 prevê inclusive a participação da CNDH na definição e execução de políticas públicas que envolvam os direitos humanos. No entanto, falta a ideia do conjunto e a definição de metas e de critérios claros de aferição da conformidade ou compatibilidade da actuação com os padrões aceitáveis dos direitos humanos.

Na verdade, a transversalidade dos direitos humanos requerer a apreensão do quadro global e a definição de mecanismos específicos de coordenação das acções, de modo a que não se construa de um lado e se destrua do outro. Note-se que não raras vezes a promoção ou protecção dos direitos humanos pode encerrar em si a violação dos direitos humanos, não só pela promoção ou protecção deficiente de um determinado direito, mas sobretudo a violação de outros direitos. Por exemplo, a construção de um centro de saúde é, sem dúvida, um importante instrumento de promoção do direito à saúde e ao bem-estar das pessoas. Mas se for mal executado ou mal gerido pode implicar a violação do próprio direito à saúde e de outros direitos, nomeadamente se o Centro não tiver mecanismos de prevenção e combate às infecções hospitalares; se o Centro não tiver um sistema de esgoto e de tratamento e incineração de resíduos hospitalares; se a comunidade não tiver sido envolvida no processo de tomada de decisão e escolha da sua localização e em consequência disso se o local sagrado da comunidade tiver sido destruído ou afectado; se o proprietário do terreno não for indemnizado devidamente.

A integração dos direitos humanos nos programas governamentais 

Em todos os programas governamentais aparecem sempre medidas direccionadas à promoção e protecção dos direitos humanos, mas de forma dispersa e diluída nos diferentes sectores, em particular nos chamados pelouros de soberania e nos sectores sociais. No entanto, falta o seu direccionamento específico ao reforço da promoção e protecção de um determinado direito ou grupo de direitos.

Apesar da universalidade e transversalidade dos direitos humanos, os programas governamentais carecem de um Capítulo dedicado ao sector, que vai sintetizar a visão política e programática do Governo num determinado horizonte temporal. Essa integração e enquadramento específico dos direitos humanos nos programas de governo permitirão dar-lhes a maior visibilidade durante as discussões do Programa na Assembleia Nacional Popular bem como melhorar a sua apropriação e posterior fiscalização pelos parlamentares. E se é boa prática a Proposta do Orçamento Geral de Estado ser discutida com os parceiros sociais, a experiência deve ser aproveitada para o domínio dos direitos humanos, permitindo que as organizações que actuam no sector dos direitos humanos e a autoridade responsável pelos direitos humanos sejam envolvidos, inclusive, na elaboração do Programa de governo.

Os Direitos Humanos como critério e fim da acção pública e privada

Numa sociedade democrática e de direito, o Estado não tem outra missão que não seja a promoção e protecção dos direitos das pessoas. E isso é mais evidente hoje com o alargamento do conceito dos direitos humanos aos chamados direitos de terceira ou quarta geração, que inclui nomeadamente o direito ao ambiente, à paz, ao desenvolvimento e à segurança. Por isso, a promoção e protecção dos direitos humanos deve ser o critério e o fim da actuação pública, com reflexos na actuação privada. Em caso de projectos de grande envergadura ou de grande risco, a estrutura nacional responsável pelos direitos humanos deverá ser ouvida para oferecer as suas observações sobre a compatibilidade com os direitos humanos.

É verdade que actualmentente existem os chamados Estudos de Impacto Ambiental e Social, mas a maioria de decisões que são tomadas, pela sua natureza, não carecem de tais estudos. Mesmo nos casos em que esses estudos são necessários e são feitos, os elementos de ponderação na sua elaboração não integram suficientemente a questão dos direitos humanos.

Se o respeito pelos direitos humanos for o critério e fim da actuação das entidades públicas e privadas, passaremos, por exemplo, a cuidar da saúde dos médicos, da educação dos professores, da segurança dos bombeiros, da integridade física dos polícias, dos direitos dos activistas dos direitos humanos, tal como já cuidamos, em certa medida, dos direitos dos líderes sindicais e da independência dos juízes e dos titulares de cargos públicos e políticos.

Casos caricatos e ilustrativos de como os direitos humanos não fazem parte do processo de tomada de decisão e da sua execução:

1.  A generalidade de edifícios públicos, mesmo os mais recentes, não têm acessos e casas de banho adequados para os deficientes e crianças;
2.  Por erro das finanças ou do serviço a que pertence, um funcionário cujo nome não vem na folha de vencimento no mês findo, só recebe no próximo mês. Ninguém quer saber como vai sobreviver até lá;
3. O pessoal da Câmara Municipal de Bissau recolhe o lixo em condições mais degradantes para nos proteger de doenças que o lixo pode provocar mas ninguém se indigna com a violação dos seus direitos para proteger os nossos.

Necessidade de regresso à burocracia

Usar os Direitos Humanos como um dos critérios para a tomada da decisão requerer o regresso à burocracia, entendida este no sentido positivo da palavra, em que os processos decisórios são devidamente instruídos, observando as diferentes fases da tramitação até a decisão final, susceptível de avaliação e revisão, se necessário. Neste particular, o cumprimento rigoroso do Código do Procedimento Administrativo e dos Manuais de Procedimento quando existam deverá ser uma realidade, acabando-se com a prática de as decisões serem tomadas pelos Membros do Governo ou responsáveis das instituições durante as audiências, não raras na presença do interessado, sem audição prévia dos serviços competentes.

A actual Comissão Nacional para os Direitos Humanos

O quadro de promoção e protecção dos direitos humanos só fica completo se tivermos uma estrutura nacional com poderes adequados para monitorizar e avaliar a implementação da Estratégia Nacional. Sobre as estruturas nacionais dos direitos humanos, existem os Princípios de Paris, adoptados pela Assembleia Geral da ONU, que contém directrizes sobre a criação, organização e funcionamento das estruturas públicas nacionais responsáveis pelos direitos humanos.

A prática dos Estado tem sido de criação de Comissões Nacionais para os Direitos Humanos. Em alguns países, as Provedorias de Justiça (Ombudsman) são combinadas ou paralelas às Comissões Nacionais para os Direitos Humanos ou Justiça.

A Guiné-Bissau não foge a essa tendência, e criou, por Decreto n.º 6/2009, uma Comissão Nacional para os Direitos Humanos (CNDH). Nos termos deste diploma, a CNDH tem uma composição muito abrangente, representando todos os actores principais do sector dos direitos humanos; uma Comissão Executiva (CNDH em miniatura) dirigida pelo Presidente, composto por mais duas pessoas, cooptadas de entre os membros do CNDH; e um Secretariado Técnico composto por um Técnico Superior e um Oficial Administrativo.

Apesar da boa composição do CNDH, o Decreto n.º 6/2009 pecou ao acreditar que a CNDH possa funcionar e cumprir o essencial da sua missão com um Secretariado inicial de apoio reduzido a apenas um Técnico Superior e um Oficial Administrativo. Consequência disso, e aliado ainda à falta de meios financeiros para contratação de serviços externos, a Comissão Nacional é quase desconhecida do cidadão médio.

Transformação da actual CNDH em Autoridade Nacional para os Direitos Humanos 

No quadro da existência de uma Estratégia Nacional para a Promoção e Protecção dos Direitos Humanos (ENDH), a CNDH deverá evoluir para uma estrutura com poderes reforçados. A evolução deve incluir a denominação (i), o reforço dos seus poderes (ii) e a orgânica e forma de nomeação do seu Presidente (iii).

(i) Embora o nome não dite a natureza da instituição ou do órgão, não devemos menosprezar a importância da simbologia. O termo Comissão, em si, tal como é tradicionalmente entendido, prejudica a visibilidade e atractividade da actual estrutura pública dos direitos humanos, porquanto inculca a ideia de ausência de poder e de autonomia decisória, inerente às Comissões. 

(ii) No lugar da CNDH, deverá erguer-se uma Autoridade Nacional para os Direitos Humanos (ANDH), dotada de poderes, meios e autonomia de funcionamento que lhes permitam estar ao serviço directo do cidadão, sem prejuízo da sua missão de conselheiro do governo e de outras instituições públicas. Em articulação com os outros serviços ou órgãos, a ANDH deverá ser o responsável principal pela promoção e protecção dos direitos humanos no país.

(iii) A ANDH deverá ser dotada de uma estrutura orgânica adequada à sua missão reforçada. A par do órgão de representação dos diferentes intervenientes no sector, assegurada hoje pela composição do CNDH, será necessário dotá-la de uma estrutura técnica permanente, sem contar com os serviços externos que poderão se contratados sempre que forem necessários. A divisão clássica dos direitos humanos em Civis e políticos (primeira geração); direitos económicos, sociais e culturais (segunda geração) e direitos difusos e colectivos (terceira geração), sem contar com a discutível quarta geração (biogenética, etc.), é um indicador de uma possível estruturação dos serviços de apoio. Ainda termos orgânicos, uma separação da componente Promoção e Protecção será de equacionar, de modo a assegurar a especialização do pessoal.

O Presidente da ANDH, ao contrário da sua livre nomeação actual pelo Governo, deverá ser escolhido por concurso aberto, submetido apenas à aprovação das autoridades políticas, e inamovível durante o exercício do seu mandato, salvo motivos disciplinares, o que não muito claro na redacção do Decreto n.º6/2009 em vigor. 

Note-se que as estruturas nacionais dos direitos humanos, tal como concebidas nos Princípios de Paris e adoptados pela Assembleia Geral da ONU, são para serem verdadeiras autoridades nacionais dos direitos humanos, uma espécie de respaldo nacional do Alto Comissariado da Nações Unidas para os Direitos Humanos. O próprio Decreto n.º 6/2009 já confere importantes poderes a actual CNDH, o que irá facilitar a transição da CNDH para a ANDH.

Com efeito, a reestruturação da CNDH em curso para a alinhar com as Resoluções da Assembleia Geral da ONU, do Conselho dos Direitos Humanos sobre os mecanismos nacionais e ainda com a Declaração de Lisboa de Maio de 2013 sobre o assunto, tal como recomendado na avaliação periódica do país, deverá aproveitada para fazer a tal transição material e formal na promoção e protecção dos direitos humanos na Guiné-Bissau. 

Cabe referir que a transformação da CNDH em ANDH não seria uma novidade no país. Tivemos a experiência recente bem-sucedida de transformação do Instituto das Comunicações em Autoridade Reguladora Nacional, que funciona como uma verdadeira autoridade do sector.

Mecanismos nacionais de monitoramento e avaliação

O país é monitorizado e avaliado periodicamente no plano internacional, mas não dispõe de um respaldo interno semelhante. É verdade que a actual CNDH tem competência para seguir a implementação do Plano Nacional de Acção dos Direitos Humanos, documento que não elabora, pelo menos esse poder não lhe é conferido pelo n.º 6/2009. Tem ainda competência para coordenar a elaboração dos Relatórios periódicos a serem submetidos no plano internacional. Mas trata-se de acções específicas que não se confundem com os mecanismos nacionais de monitoramento e avaliação, uma espécie de autoavaliação, que iria para lá dos propósitos dos Relatórios periódicos.

Com efeito, um mecanismo interno de avaliação dos progressos e retrocessos na execução da Estratégia Nacional dos Direitos Humanos será necessário para permitir ao país ter a ideia da situação dos direitos humanos. Não basta ter a impressão da existência de melhorias ou retrocessos. É preciso que seja um conhecimento consciente da realidade, resultante de uma avaliação global rigorosa, feita por estruturas competentes. Assim, o reforço da missão da ANDH incluirá não só a elaboração da ENDH mas também a sua execução, monitoramento e avaliação.

Oportunidade para uma avaliação ambiciosa

A institucionalização de um mecanismo de avaliação interna seria a oportunidade para olharmos, com rigor, ao espelho e vermos como evoluímos ou regredirmos. A fotografia dos direitos humanos que se pretende apreender através de uma avaliação interna não deve excluir nenhum subsector ou interveniente. A ambição será ir para lá das áreas ou temáticas cobertas pelo sistema de avaliação internacional, operando com informações ou canais só acessíveis a um actor local. 

Dissemos supra que é preciso defender os direitos humanos dos activistas dos direitos humanos. Neste mecanismo de monitoramento e avaliação, seria igualmente passado em revista o seu comportamento, para saber em que medida violam também os direitos que propõem promover e proteger quando, não raras vezes, utilizam adjectivos susceptíveis de pôr em causa o bom nome e a dignidade dos titulares de cargos políticos sem que esses adjectivos sejam absolutamente necessários à defesa dos direitos supostamente violados.

Seria oportunidade para auscultarmos regularmente certos actores que, supostamente, são os responsáveis maiores pelas violações dos direitos humanos, mas cujas violações não raras vezes decorrem da violação dos seus direitos por quem os acusa. Estamos a referir-nos às forças da defesa e segurança, que estão expostas a todo o tipo de escrutínio mas não têm capacidade de reacção, sob pena de serem acusados de insubordinação. A boa ou má gestão das forças de defesa e de segurança pelos civis, o respeito pelos princípios do seu autogoverno, em particular a gestão de carreiras militares ou paramilitares, são também uma questão dos direitos humanos – o direito à segurança – que será colocado sob avaliação.

Por fim, seria a oportunidade para avaliarmos de forma minuciosa os sectores menos escrutinados da nossa sociedade, mas que violam igualmente os direitos humanos com importantes consequências para a colectividade. Na verdade, trata-se de sectores pontualmente já abordados sumariamente pela LGDH nos seus Relatórios anuais, dependendo da sua actualidade num determinado ano. Em todo o caso, trata-se de uma avaliação que não deixa de reflectir as limitações de uma ONG, que não tem a abrangência, representatividade e autoridade de uma estrutura pública nacional responsável pelos direitos humanos.

Com efeito, os sectores em causa são a magistratura (i), a imprensa (ii), as autoridades tradicionais e religiosas (iii) e nos partidos políticos (iv). 

Os primeiros autogovernam-se na prática e não existem mecanismos externos do seu escrutínio, considerado o fraco peso de membros do Conselho Superior da Magistratura que não fazem parte da corporação (i); em relação à segunda, apesar da existência do Conselho Nacional da Comunicação Social (cuja missão é mais limitada), ninguém tem capacidade de reacção contra ela, porque reage em corporação e tem antena permanente à sua disposição (ii); as terceiras não estão sob controlo das autoridades públicas, sobretudo as autoridades religiosas (iii); os últimos, socorrendo-se da autonomia associativa privada, têm zonas de sombra que ninguém controla e fogem ao escrutínio formal das autoridades. E não serve dizer que os seus Estatutos e a composição dos seus órgãos são depositados no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), porque se trata de um mero depósito para assegurar a autenticidade, sem que o STJ possa fazer um controlo prévio da sua conformidade legal ou constitucional.

Por ser da actualidade, ressalta mais à vista a questão de disciplina partidária, pouco regulada, o que permite que os partidos políticos componham e formatem livremente o leque de matérias sujeitas à disciplina de voto em qualquer órgão em que estejam representados, em particular no parlamento. 

Portanto, a inclusão dos partidos políticos na avaliação periódica interna permitiria passar em revista o seu funcionamento, de modo a analisar e a produzir recomendações para melhoria da democracia interna dos mesmos.

Monitorização e avaliação interna ao serviço da promoção da paz e estabilidade

É consensual a relação entre os direitos humanos e a paz e estabilidade política, consenso que se reflecte cada vez mais no alargamento do conceito de situações que ameaçam à paz e estabilidade internacionais. Não existe, pois, paz e estabilidade política onde não há respeito dos direitos humanos, tanto é assim que os países mais estáveis, são onde os direitos humanos são mais respeitados. 

Com efeito, uma monitorização e avaliação interna abrangente irão permitir que avaliemos a possível relação entre os golpes de Estado e a instabilidade política, de um lado, e as violações dos direitos humanos, do outro, e, a partir dessa avaliação, accionarmos os mecanismos de alerta, conforme previsto no Decreto n.º 6/2009 e nos pertinentes instrumentos da CEDEAO. Todo o mundo parece se surpreender-se com crises e conflitos, porque os diagnósticos das causas mediatas e imediatas é sempre pós-conflito, com o agravante de o pós-diagnóstico não ter seguimento, avaliação e correcção de erros.

Conclusões finais

Os direitos humanos são transversais e universais. Esta sua característica pode ser uma janela de oportunidade para que possam servir de instrumento de criação de consensos nacionais e critério para uma prossecução eficaz do interesse público, ao mesmo que tempo que o Mecanismo de Monitorização e Avaliação regular da Estratégia Nacional dos Direitos Humanos servirá de veículo de promoção de diálogo e conhecimento mútuo entre os participantes no processo de monitorização e avaliação, condição sine qua non para a paz e estabilidade política e social que há anos nos tem fugido. E sem minimizar a genialidade e o carisma dos que organizaram e dirigiram a luta de libertação nacional – Amílcar Cabral e seus camaradas – esse período recente da história do nosso país mostra que houve sucesso porque conseguimos identificar e isolar de forma clara o inimigo – o colonialismo – que nem sequer foi confundido com o Povo Português. Mas havia um outro inimigo – o subdesenvolvimento –, que seria objecto de combate no âmbito do “Programa Maior” do Partido. Só que esse combate seria feito pelo Estado da Guiné-Bissau e pelos Guineenses e não pelo Movimento de Libertação Nacional cujos membros ainda eram portugueses. Depois da independência, o segundo inimigo, mais habilidoso, diluiu-se no meio de nós e não tem sido possível isolá-lo. A adopção dos direitos humanos como critério pode nos permitir isolar e combater esse inimigo e com isso honrar a memória dos Combatentes da Liberdade da Pátria, que continuaram a luta dos primeiros resistentes como Bibiana Vaz, Incinha Té, Mamadi Bolola, Nkanandé, Mussa Moló, Dembel, Moli Boiá, Bacar Indjai, etc.
 
Pedro Rosa Có é guineense e Jurista no Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos. O autor adverte que o artigo é da sua inteira responsabilidade e não reflecte o ponto de vista da instituição a que está afecto.