Introito
Fomos convidados pelo Presidente da Liga Guineense dos
Direitos Humanos (LGDH) para escrever um artigo a ser publicado no presente
número da Revista da organização. Sentimo-nos honrados não apenas pelo convite
mas, sobretudo, pela oportunidade que nos foi oferecida de participar nesta
importante actividade de promoção e reforço da protecção dos direitos humanos
no nosso país.
A internacionalização dos direitos humanos em termos de
tutela, monitoramento e da aplicação interna dos instrumentos internacionais na
matéria, bem como a integração dos direitos como critério de cooperação entre
os Estados, aliado à consolidação da ideia da sua universalidade, tem criado a
impressão de que a questão dos direitos humanos interessam mais aos outros do
que aos próprios nacionais.
Concretizemos: quando um país é sancionado por incumprimento
dos direitos humanos, por exemplo, quando suspenso da organização de que é
membro, ou vê reduzida, suspensa ou cancelada a ajuda pública ao desenvolvimento
que lhe é destinada por causa da violação dos direitos humanos, fica a
impressão de que o principal interessado no respeito pelos padrões
internacionais na matéria é o autor das sanções ou a dita comunidade
internacional. Nada mais errado! Quando a União Europeia (UE) sanciona a
Guiné-Bissau por violação sistemática dos direitos humanos em violação do
Acordo de Lomé entre a EU e os Estados África, Caraíbas e Pacífico, o objectivo
imediato não é a defesa dos interesses da UE como organização ou dos cidadãos
europeus. O que está em causa são os direitos dos guineenses, que foram
violados de forma grave por quem deveria os promover e proteger.
Cabe às autoridades guineenses promover e proteger os
direitos dos seus cidadãos. A obrigação principal de promoção e protecção
consta da Lei Magna nacional e não dos instrumentos internacionais ou dos
acordos de cooperação. Os titulares de cargos políticos foram eleitos ou nomeados
nos termos da referida Lei Magna e das leis internas, com um programa ou missão
que não inclui a violação dos direitos humanos mas sim o seu respeito; a
administração pública exerce poderes nos termos das leis internas que as
obrigam a respeitar os direitos de todos; aos guineenses cabe, individualmente ou
em conjunto, defender-se das violações dos seus direitos e respeitar, inclusive,
ajudar a promover e proteger os direitos dos outros.
A tutela internacional é meramente complementar, pelo que o
accionamento de mecanismos internacionais significa que se falhou internamente
em prejuízo dos guineenses e da Guiné-Bissau. Nos termos do sistema africano de
promoção e protecção dos direitos humanos, ancorado na concepção africana de
direito da sociedade tradicional africana, de base comunitária, em detrimento
da concepção ocidental, de base individualista, a obrigação do indivíduo de
participar na promoção e sacrificar-se mesmo em nome do interesse colectivo é
maior. Deveria decorrer desse conceito a obrigação ainda maior por parte das
autoridades e dos titulares de cargos políticos de se sacrificarem, inclusive a
nível pessoal, em nome da colectividade a que pertencem e têm a obrigação de
proteger.
Nesta senda de responsabilidade individual de contribuir
para que os meus direitos e o dos outros sejam respeitados, vem as presentes
linhas, que se articulam a volta da necessidade de definição clara de uma Estratégia
Nacional para os Direitos Humanos, que servirá de veículo para uma definição
clara de Políticas públicas no domínio dos direitos humanos, a integração
sistemática dos direitos humanos nos programas de governo, bem como a criação
de um mecanismo nacional de monitorização e avaliação, com a participação da
sociedade civil e das autoridades tradicionais na elaboração da Estratégia, na
definição de Política Pública para o sector e no seu monitoramento e avaliação.
Pensamos que a situação prevalecente de dispersão de
instrumentos e de programas nacionais e internacionais no sector faz perder a
ideia do conjunto e dilui responsabilidades quer pelo sucesso quer pelo
insucesso na promoção e protecção dos direitos humanos. E se é evidente a
necessidade de uma política única e coordenada, naturalmente ganha corpo, com a
mesma urgência, a necessidade uma verdadeira autoridade nacional dos direitos
humanos.
Fizemos a opção de não citar as disposições legais nacionais
e internacionais mesmo quando os instrumentos são identificados, porque o objetivo
não é produzir um artigo académico, mas sim lançar pistas de reflexão para os
diferentes interessados e actores do sistema.
Monitorização
internacional dos Direitos Humanos
Quer por força da sua Constituição, quer por força de
acordos internacionais de que é parte, a Guiné-Bissau está vinculada no plano
internacional geral, continental e regional aos principais instrumentos dos
direitos humanos, que compõem o que alguns chamam de Carta Internacional dos
Direitos Humanos. Esses instrumentos internacionais têm mecanismos periódicos
de monitorização e avaliação internacional, nomeadamente as avaliações
periódicas por via de Relatórios que os Estados partes submetem ou por via de
mecanismos especiais.
A nível do sistema das Nações Unidas, a Guiné-Bissau
apresentou o seu segundo Relatório em 2015, não se registando nenhum Relatório
no sistema africano de avaliação periódica. Esse vazio amputa o país da
possibilidade de comparar ambas as avaliações e ter uma ideia de eventuais
diferenças de perspectivas sobre as mesmas matérias.
Refira-se que os Relatórios periódicos são um instrumento de
diálogo formal, estruturado e concentrado no qual participam os Estados
membros, os profissionais independentes, organizações não-governamentais do
sector e os órgãos competentes dos instrumentos ou das organizações
concernentes. São analisados e discutidos com as autoridades competentes do
país e produzidas as observações e respectivas recomendações.
Com efeito, abundam as observações e recomendações diversas
produzidas por diferentes estruturas e organizações internacionais sobre a
Guiné-Bissau em matéria dos direitos humanos no quadro de avaliações periódicas
ou pontuais, ou ainda no quadro de mediações ou monitoramento de conflitos
diversos que o país tem vivido.
A nível nacional, documentos diversos sobre a situação dos
direitos humanos são produzidos por ONG’s, em particular a LGDH, representações
de organismos internacionais e as próprias entidades públicas, sem contar com
as reflexões académicas diversas e os Relatórios de alguns países como o
Departamento de Estado dos EUA.
Estratégia
Nacional para a Promoção e Protecção dos Direitos Humanos
Apesar de os direitos humanos serem universais, a sua
promoção e protecção é essencialmente nacional, a cargo principal do Estado. O
cumprimento das obrigações do Estado em matéria dos direitos humanos
decorrentes dos compromissos internacionais ou internos, requer a elaboração e
aprovação de uma estratégia nacional, que podemos chamar de uma Estratégia
Nacional para a Promoção e Protecção dos Direitos Humanos (ENDH). É verdade que
o Decreto n.º 6/2009 que criou a Comissão Nacional para os Direitos Humanos (CNDH)
prevê um Plano Nacional de Acção para os Direitos Humanos mas não diz quem o
elabora e como é elaborado.
Com efeito, pensamos que as observações, recomendações,
estudos e relatórios diversos produzidas a nível internacional e nacional sobre
o sector dos direitos humanos na Guiné-Bissau são suficientemente abrangentes e
densos em termos de informações para servirem de base para a elaboração da ENDH.
Com a participação da sociedade civil, do poder tradicional e das entidades
públicas concernentes, a ENDH seria elaborada pela estrutura nacional
responsável pelos direitos humanos e submetida a aprovação ao mais alto nível
(Governo, Assembleia Nacional Popular e Presidência da República).
Refira-se que o país já conta com estratégias ou planos
nacionais nos diferentes sectores, nomeadamente saúde, educação, mulher e
criança. Todos eles entroncam com a questão dos direitos humanos mas carecem de
uma coordenação eficaz e focalizada na melhoria das condições de exercício
individual e/ou colectivo dos direitos inerentes. Por exemplo, para uma
garantia efectiva do acesso à educação, à saúde, bem da promoção do género, é
preciso saber o que dizem as observações e recomendações nacionais e
internacionais sobre o respeito pela Guiné-Bissau das suas obrigações na
matéria.
A existência de ENDH iria ajudar a reduzir mudanças
frequentes de orientações decorrentes de mudanças de governo ou alternância no
poder. E isso é tão pertinente quanto a frequência com que os governos mudam no
nosso país e as causas dessas mudanças tendem a implicar mudanças de orientação
e variação do nível de compromisso com certos resultados ou prioridades.
Políticas
públicas para os direitos humanos
O conceito de políticas públicas pode ser resumido a um
conjunto de acções mais ou menos coordenadas levadas a cabo pelas entidades
públicas, de forma directa ou indirecta, com vista a atingir um determinado resultado
em benefício dos cidadãos.
Por este conceito, não podemos dizer que não existe na
Guiné-Bissau políticas públicas, no sentido lato do termo, no sector dos
direitos humanos. Existem acções, com maior ou menor coordenação e consistência
que visam melhorar o exercício ou gozo dos direitos humanos pelas pessoas no
nosso país. O Decreto n.º 6/2009 prevê inclusive a participação da CNDH na
definição e execução de políticas públicas que envolvam os direitos humanos. No
entanto, falta a ideia do conjunto e a definição de metas e de critérios claros
de aferição da conformidade ou compatibilidade da actuação com os padrões aceitáveis
dos direitos humanos.
Na verdade, a transversalidade dos direitos humanos requerer
a apreensão do quadro global e a definição de mecanismos específicos de
coordenação das acções, de modo a que não se construa de um lado e se destrua
do outro. Note-se que não raras vezes a promoção ou protecção dos direitos
humanos pode encerrar em si a violação dos direitos humanos, não só pela promoção
ou protecção deficiente de um determinado direito, mas sobretudo a violação de
outros direitos. Por exemplo, a construção de um centro de saúde é, sem dúvida,
um importante instrumento de promoção do direito à saúde e ao bem-estar das pessoas.
Mas se for mal executado ou mal gerido pode implicar a violação do próprio
direito à saúde e de outros direitos, nomeadamente se o Centro não tiver
mecanismos de prevenção e combate às infecções hospitalares; se o Centro não
tiver um sistema de esgoto e de tratamento e incineração de resíduos
hospitalares; se a comunidade não tiver sido envolvida no processo de tomada de
decisão e escolha da sua localização e em consequência disso se o local sagrado
da comunidade tiver sido destruído ou afectado; se o proprietário do terreno não
for indemnizado devidamente.
A integração
dos direitos humanos nos programas governamentais
Em todos os programas governamentais aparecem sempre medidas
direccionadas à promoção e protecção dos direitos humanos, mas de forma
dispersa e diluída nos diferentes sectores, em particular nos chamados pelouros
de soberania e nos sectores sociais. No entanto, falta o seu direccionamento
específico ao reforço da promoção e protecção de um determinado direito ou
grupo de direitos.
Apesar da universalidade e transversalidade dos direitos
humanos, os programas governamentais carecem de um Capítulo dedicado ao sector,
que vai sintetizar a visão política e programática do Governo num determinado
horizonte temporal. Essa integração e enquadramento específico dos direitos
humanos nos programas de governo permitirão dar-lhes a maior visibilidade
durante as discussões do Programa na Assembleia Nacional Popular bem como melhorar
a sua apropriação e posterior fiscalização pelos parlamentares. E se é boa
prática a Proposta do Orçamento Geral de Estado ser discutida com os parceiros
sociais, a experiência deve ser aproveitada para o domínio dos direitos
humanos, permitindo que as organizações que actuam no sector dos direitos
humanos e a autoridade responsável pelos direitos humanos sejam envolvidos,
inclusive, na elaboração do Programa de governo.
Os Direitos
Humanos como critério e fim da acção pública e privada
Numa sociedade democrática e de direito, o Estado não tem
outra missão que não seja a promoção e protecção dos direitos das pessoas. E
isso é mais evidente hoje com o alargamento do conceito dos direitos humanos
aos chamados direitos de terceira ou quarta geração, que inclui nomeadamente o
direito ao ambiente, à paz, ao desenvolvimento e à segurança. Por isso, a promoção
e protecção dos direitos humanos deve ser o critério e o fim da actuação
pública, com reflexos na actuação privada. Em caso de projectos de grande
envergadura ou de grande risco, a estrutura nacional responsável pelos direitos
humanos deverá ser ouvida para oferecer as suas observações sobre a
compatibilidade com os direitos humanos.
É verdade que actualmentente existem os chamados Estudos de
Impacto Ambiental e Social, mas a maioria de decisões que são tomadas, pela sua
natureza, não carecem de tais estudos. Mesmo nos casos em que esses estudos são
necessários e são feitos, os elementos de ponderação na sua elaboração não
integram suficientemente a questão dos direitos humanos.
Se o respeito pelos direitos humanos for o critério e fim da
actuação das entidades públicas e privadas, passaremos, por exemplo, a cuidar
da saúde dos médicos, da educação dos professores, da segurança dos bombeiros,
da integridade física dos polícias, dos direitos dos activistas dos direitos
humanos, tal como já cuidamos, em certa medida, dos direitos dos líderes
sindicais e da independência dos juízes e dos titulares de cargos públicos e
políticos.
Casos caricatos e ilustrativos de como os direitos humanos
não fazem parte do processo de tomada de decisão e da sua execução:
1. A generalidade de
edifícios públicos, mesmo os mais recentes, não têm acessos e casas de banho
adequados para os deficientes e crianças;
2. Por erro das
finanças ou do serviço a que pertence, um funcionário cujo nome não vem na
folha de vencimento no mês findo, só recebe no próximo mês. Ninguém quer saber
como vai sobreviver até lá;
3. O pessoal da Câmara Municipal de Bissau recolhe o lixo em
condições mais degradantes para nos proteger de doenças que o lixo pode
provocar mas ninguém se indigna com a violação dos seus direitos para proteger
os nossos.
Necessidade
de regresso à burocracia
Usar os Direitos Humanos como um dos critérios para a tomada
da decisão requerer o regresso à burocracia, entendida este no sentido positivo
da palavra, em que os processos decisórios são devidamente instruídos,
observando as diferentes fases da tramitação até a decisão final, susceptível
de avaliação e revisão, se necessário. Neste particular, o cumprimento rigoroso
do Código do Procedimento Administrativo e dos Manuais de Procedimento quando
existam deverá ser uma realidade, acabando-se com a prática de as decisões serem
tomadas pelos Membros do Governo ou responsáveis das instituições durante as
audiências, não raras na presença do interessado, sem audição prévia dos
serviços competentes.
A actual Comissão
Nacional para os Direitos Humanos
O quadro de promoção e protecção dos direitos humanos só
fica completo se tivermos uma estrutura nacional com poderes adequados para
monitorizar e avaliar a implementação da Estratégia Nacional. Sobre as
estruturas nacionais dos direitos humanos, existem os Princípios de Paris,
adoptados pela Assembleia Geral da ONU, que contém directrizes sobre a criação,
organização e funcionamento das estruturas públicas nacionais responsáveis
pelos direitos humanos.
A prática dos Estado tem sido de criação de Comissões Nacionais
para os Direitos Humanos. Em alguns países, as Provedorias de Justiça
(Ombudsman) são combinadas ou paralelas às Comissões Nacionais para os Direitos
Humanos ou Justiça.
A Guiné-Bissau não foge a essa tendência, e criou, por
Decreto n.º 6/2009, uma Comissão Nacional para os Direitos Humanos (CNDH). Nos
termos deste diploma, a CNDH tem uma composição muito abrangente, representando
todos os actores principais do sector dos direitos humanos; uma Comissão
Executiva (CNDH em miniatura) dirigida pelo Presidente, composto por mais duas
pessoas, cooptadas de entre os membros do CNDH; e um Secretariado Técnico
composto por um Técnico Superior e um Oficial Administrativo.
Apesar da boa composição do CNDH, o Decreto n.º 6/2009 pecou
ao acreditar que a CNDH possa funcionar e cumprir o essencial da sua missão com
um Secretariado inicial de apoio reduzido a apenas um Técnico Superior e um
Oficial Administrativo. Consequência disso, e aliado ainda à falta de meios
financeiros para contratação de serviços externos, a Comissão Nacional é quase desconhecida
do cidadão médio.
Transformação
da actual CNDH em Autoridade Nacional para os Direitos Humanos
No quadro da existência de uma Estratégia Nacional para a Promoção
e Protecção dos Direitos Humanos (ENDH), a CNDH deverá evoluir para uma estrutura
com poderes reforçados. A evolução deve incluir a denominação (i), o reforço
dos seus poderes (ii) e a orgânica e forma de nomeação do seu Presidente (iii).
(i) Embora o nome não dite a natureza da instituição ou do órgão,
não devemos menosprezar a importância da simbologia. O termo Comissão, em si, tal como é
tradicionalmente entendido, prejudica a visibilidade e atractividade da actual
estrutura pública dos direitos humanos, porquanto inculca a ideia de ausência
de poder e de autonomia decisória, inerente às Comissões.
(ii) No lugar da CNDH, deverá erguer-se uma Autoridade
Nacional para os Direitos Humanos (ANDH), dotada de poderes, meios e autonomia
de funcionamento que lhes permitam estar ao serviço directo do cidadão, sem prejuízo
da sua missão de conselheiro do governo e de outras instituições públicas. Em
articulação com os outros serviços ou órgãos, a ANDH deverá ser o responsável
principal pela promoção e protecção dos direitos humanos no país.
(iii) A ANDH deverá ser dotada de uma estrutura orgânica adequada
à sua missão reforçada. A par do órgão de representação dos diferentes
intervenientes no sector, assegurada hoje pela composição do CNDH, será necessário
dotá-la de uma estrutura técnica permanente, sem contar com os serviços
externos que poderão se contratados sempre que forem necessários. A divisão
clássica dos direitos humanos em Civis e
políticos (primeira geração); direitos económicos, sociais e culturais (segunda
geração) e direitos difusos e colectivos (terceira geração), sem contar com
a discutível quarta geração (biogenética,
etc.), é um indicador de uma possível estruturação dos serviços de apoio.
Ainda termos orgânicos, uma separação da componente Promoção e Protecção será
de equacionar, de modo a assegurar a especialização do pessoal.
O Presidente da ANDH, ao contrário da sua livre nomeação
actual pelo Governo, deverá ser escolhido por concurso aberto, submetido apenas
à aprovação das autoridades políticas, e inamovível durante o exercício do seu mandato,
salvo motivos disciplinares, o que não muito claro na redacção do Decreto n.º6/2009
em vigor.
Note-se que as estruturas nacionais dos direitos humanos,
tal como concebidas nos Princípios de Paris e adoptados pela Assembleia Geral
da ONU, são para serem verdadeiras autoridades nacionais dos direitos humanos, uma
espécie de respaldo nacional do Alto Comissariado da Nações Unidas para os
Direitos Humanos. O próprio Decreto n.º 6/2009 já confere importantes poderes a
actual CNDH, o que irá facilitar a transição da CNDH para a ANDH.
Com efeito, a reestruturação da CNDH em curso para a alinhar
com as Resoluções da Assembleia Geral da ONU, do Conselho dos Direitos Humanos
sobre os mecanismos nacionais e ainda com a Declaração de Lisboa de Maio de
2013 sobre o assunto, tal como recomendado na avaliação periódica do país,
deverá aproveitada para fazer a tal transição material e formal na promoção e
protecção dos direitos humanos na Guiné-Bissau.
Cabe referir que a transformação da CNDH em ANDH não seria
uma novidade no país. Tivemos a experiência recente bem-sucedida de
transformação do Instituto das Comunicações em Autoridade Reguladora Nacional,
que funciona como uma verdadeira autoridade do sector.
Mecanismos nacionais
de monitoramento e avaliação
O país é monitorizado e avaliado periodicamente no plano
internacional, mas não dispõe de um respaldo interno semelhante. É verdade que
a actual CNDH tem competência para seguir a implementação do Plano Nacional de
Acção dos Direitos Humanos, documento que não elabora, pelo menos esse poder
não lhe é conferido pelo n.º 6/2009. Tem ainda competência para coordenar a
elaboração dos Relatórios periódicos a serem submetidos no plano internacional.
Mas trata-se de acções específicas que não se confundem com os mecanismos
nacionais de monitoramento e avaliação, uma espécie de autoavaliação, que iria
para lá dos propósitos dos Relatórios periódicos.
Com efeito, um mecanismo interno de avaliação dos progressos
e retrocessos na execução da Estratégia Nacional dos Direitos Humanos será
necessário para permitir ao país ter a ideia da situação dos direitos humanos.
Não basta ter a impressão da existência de melhorias ou retrocessos. É preciso
que seja um conhecimento consciente da realidade, resultante de uma avaliação
global rigorosa, feita por estruturas competentes. Assim, o reforço da missão
da ANDH incluirá não só a elaboração da ENDH mas também a sua execução, monitoramento
e avaliação.
Oportunidade
para uma avaliação ambiciosa
A institucionalização de um mecanismo de avaliação interna
seria a oportunidade para olharmos, com rigor, ao espelho e vermos como evoluímos
ou regredirmos. A fotografia dos direitos humanos que se pretende apreender
através de uma avaliação interna não deve excluir nenhum subsector ou
interveniente. A ambição será ir para lá das áreas ou temáticas cobertas pelo
sistema de avaliação internacional, operando com informações ou canais só acessíveis
a um actor local.
Dissemos supra que é preciso defender os direitos humanos
dos activistas dos direitos humanos. Neste mecanismo de monitoramento e
avaliação, seria igualmente passado em revista o seu comportamento, para saber em
que medida violam também os direitos que propõem promover e proteger quando,
não raras vezes, utilizam adjectivos susceptíveis de pôr em causa o bom nome e
a dignidade dos titulares de cargos políticos sem que esses adjectivos sejam absolutamente
necessários à defesa dos direitos supostamente violados.
Seria oportunidade para auscultarmos regularmente certos
actores que, supostamente, são os responsáveis maiores pelas violações dos
direitos humanos, mas cujas violações não raras vezes decorrem da violação dos
seus direitos por quem os acusa. Estamos a referir-nos às forças da defesa e segurança,
que estão expostas a todo o tipo de escrutínio mas não têm capacidade de
reacção, sob pena de serem acusados de insubordinação. A boa ou má gestão das
forças de defesa e de segurança pelos civis, o respeito pelos princípios do seu
autogoverno, em particular a gestão de carreiras militares ou paramilitares, são
também uma questão dos direitos humanos – o direito à segurança – que será
colocado sob avaliação.
Por fim, seria a oportunidade para avaliarmos de forma
minuciosa os sectores menos escrutinados da nossa sociedade, mas que violam
igualmente os direitos humanos com importantes consequências para a
colectividade. Na verdade, trata-se de sectores pontualmente já abordados
sumariamente pela LGDH nos seus Relatórios anuais, dependendo da sua
actualidade num determinado ano. Em todo o caso, trata-se de uma avaliação que
não deixa de reflectir as limitações de uma ONG, que não tem a abrangência,
representatividade e autoridade de uma estrutura pública nacional responsável pelos
direitos humanos.
Com efeito, os sectores em causa são a magistratura (i), a imprensa
(ii), as autoridades tradicionais e religiosas (iii) e nos partidos políticos
(iv).
Os primeiros autogovernam-se na prática e não existem
mecanismos externos do seu escrutínio, considerado o fraco peso de membros do
Conselho Superior da Magistratura que não fazem parte da corporação (i); em
relação à segunda, apesar da existência do Conselho Nacional da Comunicação
Social (cuja missão é mais limitada), ninguém tem capacidade de reacção contra
ela, porque reage em corporação e tem antena permanente à sua disposição (ii); as
terceiras não estão sob controlo das autoridades públicas, sobretudo as
autoridades religiosas (iii); os últimos, socorrendo-se da autonomia
associativa privada, têm zonas de sombra que ninguém controla e fogem ao
escrutínio formal das autoridades. E não serve dizer que os seus Estatutos e a
composição dos seus órgãos são depositados no Supremo Tribunal de Justiça
(STJ), porque se trata de um mero depósito para assegurar a autenticidade, sem
que o STJ possa fazer um controlo prévio da sua conformidade legal ou
constitucional.
Por ser da actualidade, ressalta mais à vista a questão de
disciplina partidária, pouco regulada, o que permite que os partidos políticos
componham e formatem livremente o leque de matérias sujeitas à disciplina de
voto em qualquer órgão em que estejam representados, em particular no
parlamento.
Portanto, a inclusão dos partidos políticos na avaliação periódica
interna permitiria passar em revista o seu funcionamento, de modo a analisar e a
produzir recomendações para melhoria da democracia interna dos mesmos.
Monitorização
e avaliação interna ao serviço da promoção da paz e estabilidade
É consensual a relação entre os direitos humanos e a paz e
estabilidade política, consenso que se reflecte cada vez mais no alargamento do
conceito de situações que ameaçam à paz e estabilidade internacionais. Não
existe, pois, paz e estabilidade política onde não há respeito dos direitos
humanos, tanto é assim que os países mais estáveis, são onde os direitos
humanos são mais respeitados.
Com efeito, uma monitorização e avaliação interna abrangente
irão permitir que avaliemos a possível relação entre os golpes de Estado e a
instabilidade política, de um lado, e as violações dos direitos humanos, do
outro, e, a partir dessa avaliação, accionarmos os mecanismos de alerta,
conforme previsto no Decreto n.º 6/2009 e nos pertinentes instrumentos da
CEDEAO. Todo o mundo parece se surpreender-se com crises e conflitos, porque os
diagnósticos das causas mediatas e imediatas é sempre pós-conflito, com o
agravante de o pós-diagnóstico não ter seguimento, avaliação e correcção de
erros.
Conclusões
finais
Os direitos humanos são transversais e universais. Esta sua característica
pode ser uma janela de oportunidade para que possam servir de instrumento de
criação de consensos nacionais e critério para uma prossecução eficaz do
interesse público, ao mesmo que tempo que o Mecanismo de Monitorização e Avaliação
regular da Estratégia Nacional dos Direitos Humanos servirá de veículo de
promoção de diálogo e conhecimento mútuo entre os participantes no processo de
monitorização e avaliação, condição sine
qua non para a paz e estabilidade política e social que há anos nos tem
fugido. E sem minimizar a genialidade e o carisma dos que organizaram e
dirigiram a luta de libertação nacional – Amílcar Cabral e seus camaradas – esse
período recente da história do nosso país mostra que houve sucesso porque conseguimos
identificar e isolar de forma clara o inimigo – o colonialismo – que nem sequer
foi confundido com o Povo Português. Mas havia um outro inimigo – o
subdesenvolvimento –, que seria objecto de combate no âmbito do “Programa
Maior” do Partido. Só que esse combate seria feito pelo Estado da Guiné-Bissau
e pelos Guineenses e não pelo Movimento de Libertação Nacional cujos membros
ainda eram portugueses. Depois da independência, o segundo inimigo, mais
habilidoso, diluiu-se no meio de nós e não tem sido possível isolá-lo. A
adopção dos direitos humanos como critério pode nos permitir isolar e combater
esse inimigo e com isso honrar a memória dos Combatentes da Liberdade da
Pátria, que continuaram a luta dos primeiros resistentes como Bibiana Vaz, Incinha Té, Mamadi Bolola, Nkanandé,
Mussa Moló, Dembel, Moli Boiá, Bacar Indjai, etc.
Pedro Rosa Có é guineense e Jurista no Tribunal Africano dos Direitos
Humanos e dos Povos. O autor adverte que o artigo é da sua inteira
responsabilidade e não reflecte o ponto de vista da instituição a que está
afecto.