Minhas senhoras e meus senhores
Permitam-me em nome da LGDH e em meu nome pessoal endereçar calorosas saudações a todos cuja presença nos honra bastante e faz desta singela cerimónia um momento ímpar e simbólico nesta árdua, mas gratificante, luta pela defesa e promoção dos direitos humanos.
Como já vem sendo tradição, a LGDH lança hoje mais um relatório sobre a situação dos direitos humanos na Guiné-Bissau, o qual reporta-se aos anos 2020 a 2022, sob o tema “Resistir ao autoritarismo, reviver Cabral”. Este relatório constitui também uma homenagem ao fundador da nacionalidade guineense o Eng. Amílcar Lopes Cabral, cujo centenário de nascimento se comemora este ano, numa altura em que se assiste no país a mais uma tentativa aniquilação dos seus ideais e sonhos.
O documento cuja apresentação acabamos de assistir, é fruto de uma relação de paixão e de compromisso com a defesa dos valores que constituem o âmago da nossa organização e a razão de existência do Estado de direito.
Este relatório traduz-se em mais um contributo da LGDH para o reforço do sistema nacional de proteção dos direitos humanos e visa fornecer aos atores nacionais e internacionais um panorama geral e realista da situação dos direitos humanos na Guiné-Bissau. Importa referir e destacar que este relatório conta com dados de um sistema de recolha próprio, assente numa metodologia coerente de monitorização direta dos indicadores dos direitos humanos em todo o país. Igualmente, a produção deste documento contou com a colaboração de especialistas em diversas áreas temáticas de direitos humanos.
O período a que se reporta o relatório é marcado por maior recuo na promoção e defesa dos valores da dignidade da pessoa humana, sendo que os problemas anteriores, longe de serem superados, transitaram para o período contemporâneo e deram origem aos novos desafios. Refiro-me nomeadamente a ineficácia e ineficiência da justiça estadual, que continua a reclamar, com carácter de urgência, uma reforma profunda para poder fazer face aos desafios da impunidade, da criminalidade organizada e transnacional, da violência com base no género, da exploração de crianças, assim como da corrupção e/ou gestão danosa dos recursos públicos que estão a corroer as bases da nossa frágil economia.
Nestes três últimos anos o país conheceu fenómenos nunca antes vistos na Guiné-Bissau, refiro-me aos casos de raptos e espancamentos de cidadãos, perpetrados por um grupo de milícias patrocinados por certas estruturas de Estado, com a missão de praticar atos que, na perspetiva da Liga, correspondem inequivocamente a terrorismo de Estado.
Igualmente, o povo guineense assistiu a atos de perseguições e intimidações dos profissionais de comunicação social, repressão da oposição democrática traduzida nas detenções arbitrárias de dirigentes políticos e perseguições das vozes discordantes, impedimentos sistemáticos e ilegais de viagens ao estrangeiro, intimidações e instrumentalização da justiça para fins político partidário, sem ignorar as tentativas de aniquilar a liberdade sindical na Guiné-Bissau. Sobre este último assunto, as detenções arbitrárias de vários líderes sindicais e as interferências políticas grosseiras na gestão da UNTG, a maior central sindical do país, são exemplos paradigmáticos da intolerância e insensibilidade do regime vigente face ao livre exercício dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.
Minhas senhoras e meus senhores
Em 01 de Fevereiro de 2022, um grupo de homens armados atacaram criminosamente o Palácio do Governo, numa altura em que o executivo se encontrava reunido em Conselho de Ministros sob a presidência da Sua Excelência senhor Presidente da República. De acordo com o balanço feito pelas autoridades nacionais, esta ação violenta resultou em 11 mortes e vários feridos. A LGDH reafirma a sua firme e inequívoca condenação ao referido ato de violência gratuita e de alteração inconstitucional da ordem democrática e reitera o seu apoio moral e solidariedade aos familiares das vítimas exigindo, mais uma vez, a identificação e consequente responsabilização criminal dos autores morais e materiais do sucedido.
No entanto, 36 pessoas, entre os quais militares e civis, foram detidos e acusados de suposto envolvimento na tentativa de golpe de estado. Volvidos cerca de dois anos de detenções em condições infra-humanas, os suspeitos ainda não foram julgados, não obstante as autoridades judiciárias terem ordenado a libertação de um número considerável destes suspeitos. Aliás, neste momento, todos os prazos legais de prisão preventiva foram largamente ultrapassados.
A recusa em cumprir as decisões judiciais e consequente manutenção do regime de detenções, constitui uma afronta ao Estado de direito e uma violação sem precedentes do princípio de separação de poderes. Por isso, aproveitamos mais uma vez esta oportunidade, para exigir a libertação imediata destes cidadãos que se encontram sequestrados pelo Estado da Guiné-Bissau.
No que concerne aos direitos económicos e sociais, a situação da saúde guineense é deveras preocupante, na medida em que, os sucessivos governos nunca se dignaram dispensar a atenção adequada e necessária ao sector, o que contribuiu decisivamente para o agravar dos problemas relacionados com o acesso e a qualidade do serviço de saúde que é prestado aos cidadãos.
O disfuncionamento do nosso sistema de saúde começa desde logo com a insignificante dotação orçamental afecta a este sector estratégico, passando pela insuficiência dos recursos humanos em termos qualitativos e quantitativos, pela degradante situação das infraestruturas e dos equipamentos de diagnóstico devido à falta de manutenção adequada, pela repartição desigual dos recursos disponíveis, venda no mercado farmacêutico nacional de medicamentos de origem duvidosa, bem como pela ausência de mecanismos de controle da atuação dos profissionais que intervém no sector.
Constata-se ainda uma gestão inadequada dos serviços de saúde devido aos sinais evidentes de clientelismos e corrupção, acompanhada por um Sistema Nacional de Informação Sanitária deficiente e uma coordenação insatisfatória das intervenções do conjunto dos parceiros nacionais e internacionais.
Em consequência destes e outros problemas do sector, a Guiné-Bissau regista uma das mais elevadas taxas de mortalidade materna e neonatal na África subsariana.
Em relação ao sector da educação, a situação não difere de outros sectores sociais, o sistema regista degradação e ruína das infraestruturas sociais, curriculum escolar obsoleto em todos os níveis, falta de rigor e corrupção minam hipóteses de competitividade e, em consequência, milhares de crianças se encontram fora do sistema de ensino numa clara violação dos direitos humanos. Aliás, é triste constatar que centenas de aldeias nas zonas rurais, algumas com 3000 mil habitantes ou mais, não dispõem de uma única infraestrutura escolar do estado, numa clara negação do direito fundamental de acesso à educação ao povo guineense.
Minhas senhoras e meus senhores,
A participação direta e ativa de homens e mulheres na vida política constituí condição e instrumento fundamental para a consolidação do sistema democrático, devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e proibir a discriminação em função do género no acesso a cargos políticos e esferas de decisão.
A consagração formal do princípio da igualdade na nossa constituição por si só, é insuficiente, pois continuamos a registar enormes desigualdades sociais que prejudicam as mulheres. Dai ser importante e urgente rever a lei da paridade e adequa-la aos padrões internacionais permitindo maior democratização do sistema político guineense e consequente aumento do índice da participação das mulheres nas esferas de tomada de decisão. Igualmente, apelamos a mobilização de meios financeiros com vista a implementação da política nacional da igualdade e equidade de género, enquanto instrumento imprescindível nos esforços de redução das desigualdades estruturais existentes entre homens e mulheres na sociedade guineense.
A exploração das crianças, abuso sexual de menor, bem como a inexistência de um sistema nacional de proteção dos deficientes, estimulam sistematicamente atos de discriminação destes grupos, tornando-os ainda mais vulneráveis aos riscos de violações dos seus direitos e liberdades fundamentais. Por conseguinte, é imperioso adotar a lei contra a mendicidade forçada e de proteção integral de menores, bem como de um regime jurídico de proteção e promoção dos direitos das pessoas com deficiência incluindo as que vivem com o albinismo.
Minhas senhoras e meus senhores
O projeto coletivo de uma Guiné-Bissau de progresso, da paz, da democracia, do estado de direito, de igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, sonhado por Amílcar Cabral e combatentes de liberdade da Pátria, continua a ser traído por alguns guineenses, cujas prioridades se resumem apenas na satisfação dos interesses pessoais e de grupos.
Volvidos mais de 50 anos de independência, a Guiné-Bissau continua
a ocupar as piores posições no ranking do desenvolvimento humano. Os acessos à água potável, à educação e saúde de qualidade, à energia elétrica, às infraestruturas, aos recursos económicos que pertencem a todos, continuam a ser uma utopia.
Em contrapartida, um grupo de cidadãos, na maior parte dos casos desprovidos de qualquer legitimidade democrática, espoliam os recursos financeiros, ostentam criminosamente a riqueza, violam os princípios estruturantes do estado de direito, enfim, mantêm o povo refém numa gaiola, adiando sistematicamente a sua esperança e o seu direito a uma vida melhor.
Este quadro sombrio agravou-se perigosamente nos últimos três anos, após o regime vigente ter iniciado a implementação de uma agenda de desconstrução e desmantelamento da democracia e do estado de direito, dando lugar ao absolutismo e autoritarismo.
Em consequência, o país começa a assistir ao desmoronamento das instituições democráticas, à concentração de poderes numa única pessoa, as chamadas “ordens superiores” a sobreporem-se à Constituição e à ordem jurídica do país.
A situação espelhada no presente relatório prova ainda, e os guineenses o sabem, que o momento é da maior gravidade. Ou recuperamos coletivamente um sentido mínimo do Estado de Direito para enfrentar os grandes desafios do desenvolvimento, da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres e da realização dos direitos humanos que temos pela frente, ou continuamos no caminho atual e em breve atingiremos o ponto de não retorno na confiscação do Estado por interesses individuais, de grupos privados e por lógicas abusivas e criminosas, num território onde a única regra será aquela ditada pela “Ordem Superior” e pela lei do mais forte.
Não seria justo terminar esta intervenção, sem mencionar o atual momento político da Guiné-Bissau, caraterizado pela dissolução inconstitucional do parlamento, assalto ao Supremo Tribunal de Justiça por homens armados e consequente demissão do seu Presidente, demissão do governo e criação de um governo de iniciativa presidencial, intimidações dos profissionais de comunicação social, enfim, tentativas de confinamento da liberdade de manifestação decretado arbitrariamente pelo Ministério do Interior, como se o país estivesse a viver num Estado de sitio ou de emergência.
Por isso, exortamos firmemente as autoridades nacionais no sentido de abandonarem estas ações solitárias de ataque aos direitos humanos, adequando as suas condutas à constituição e às demais leis em vigor na Guiné-Bissau. Aliás, a lei tem de ser o critério, o fundamento e o limite de atuação de todas as autoridades nacionais.
É nossa convicção que a consolidação da paz, da democracia e do estado de direito, por ser um desafio coletivo, requer o concurso de ações convergentes de todos os segmentos da sociedade, sem exceção, para transformar as nossas diferenças em oportunidades e os nossos fracassos em potencialidades para erguer uma nação fundada nos valores da dignidade da pessoa humana.
Ao nosso nível, quero deixar bem claro que iremos prosseguir a nossa luta cívica de promoção e proteção dos direitos humanos na Guiné-Bissau, não obstante as ameaças e intimidações contra os ativistas dos direitos humanos. Para o efeito, e face a degradação da situação dos direitos humanos no país, iremos nos próximos tempos acionar os mecanismos Onusianos de proteção dos direitos humanos, nomeadamente, o Relator Especial sobre a liberdade de reunião e associação pacifica e demais outros.
Para finalizar, gostaria de em nome da Liga, manifestar a nossa eterna gratidão a Cooperação portuguesa pelos inestimáveis apoios concedidos, sem os quais não seria possível a produção e consequente apresentação deste relatório. Os nossos agradecimentos são extensivos a Associação pela Cooperação entre os Povos, ACEP, liderada pela incansável Fátima Proença e suas colaboradoras, pelo apoio e acompanhamento permanentes que nos têm dado nesta luta incessante e gratificante de promoção e proteção dos direitos humanos na Guiné-Bissau. Permitam-me agradecer no fundo de coração uma pessoa especial Dr. Pedro Rosa Mendes, um grande amigo da Guiné-Bissau, que decidiu a título gratuito apoiar a revisão deste relatório, o nosso muito obrigado Pedro.
Por fim, mas não menos importante, quero do fundo do meu coração agradecer os ativistas dos direitos humanos, com especial dedicatória para os presidentes da LGDH nas regiões que de forma incansável e exemplar defendem os direitos humanos em circunstâncias adversas e muitas vezes hostis.
Um Bem Haja a Todos!