14 de novembro de 2021

AINDA SOBRE OS 30 ANOS DE LGDH: DEPOIMENTO DE DR. JULIANO FERNANDES MEMBRO FUNDADOR

Meu depoimento por ocasião da celebração do trigésimo aniversario da Liga Guineense dos Direitos Humanos, a 12 de Agosto de 2021.

Concluídos os respetivos curso de formação universitária superior, três jovens guineenses, regressaram ao seu pais. 

 

Um, Juliano Augusto Fernandes, licenciado em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, em 1989, regressa a Bissau, em Agosto de 1990.

 

O segundo, Joaozinho Vieira Có, licenciado em Direito, na Itália, regressa a Bissau, em 1991/1992.

O terceiro, Fernando Gomes, licenciado em Direito na ex-URSS, regressa a Bissau em 1991/1992.

 

Os dois primeiros ingressam no Ministério das Finanças e estão colocados na Direção Geral das Alfandegas membros do Quadro Técnico Aduaneiro (QTA). Era Ministro da Economia e Finanças, o senhor Comandante Manuel dos Santos (Manecas) e Secretario de Estado do Tesouro, Eduardo Fernandes. 

 

O ultimo na Procuradoria Geral da Republica, como Assessor do Procurador Geral da Republica. Era Procurador Geral da Republica o Dr. Mario Lopes.

Juliano Augusto Fernandes, já exercia advocacia, inscrito na Advocacia do Estado, no Ministério da Justiça e lecionava na Faculdade de Direito de Bissau, quando os outros dois chegam ao pais.

 

Conhecem-se, designadamente, quando este ultimo participa nas primeiras jornadas jurídicas organizadas pela Faculdade de Direito de Bissau, tendo apresentado uma comunicação e participado de uma entrevista coletiva, com dois Professores Doutores da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a saber, Jorge Miranda e ........., promovida pela Televisão Experimental da Guine Bissau e realizada pelo Programa 60 Minutos dessa estação emissora televisiva. Entrevista, essa, conduzida pelo já falecido jornalista Vitorino Sa.

 

Joaozinho Vieira Co e Fernando Gomes, passaram a estagiar-se, em advocacia, no escritório do Juliano Augusto Fernandes.

 

Em meados de 1991, Juliano Fernandes iniciou a sua colaboração, a pedido do Ministro da Justica de então, Eng Mario Cabral, com o Gabinete de Estudos do Ministerio da Justica.

 

Fernando Gomes havia, ao que informou aos outros dois colegas, concluído a sua licenciatura na Ex-URSS, com a defesa de seu diploma, sob o tema dos Direitos Humanos.

 

No período em que regressam ao pais, já o advento de uma nova ordem jurídico-constitucional e democrática raiava-se pelos quatro cantos do mundo. 

 

A Perestroika e a queda do Muro de Berlin estavam sendo engendradas, enquanto processos transformadores em gestação.

 

Por forca disso, muitos países, designadamente os do universo lusófono, do continente africano, que estavam, de certo modo, na sequencia dos apoios que, desde a condução dos respetivos processos de lutas independentistas, vinham recebendo dos então países do Bloco de Varsovia (da URSS, sobretudo), haviam iniciado, muito tênue e timidamente, embora, debates, no seio das Nomenklaturas que os dirigiam, sobre mudanças sociopolíticas e econômicas a implementar.

 

Muito por pressão, igualmente, das instituições de Bretton Woods (FMI e BM), com os seus Programas de Ajustamento Estrutural, visando reformas econômicas, condicionantes do financiamento das respetivas economias que, assim, lhes permitiria passarem de planificadas e estatizadas a de mercado.

 

Na Guine Bissau, com inicio nos finais da década de 80, são aprovadas as primeiras linhas de politicas publicas de reformas econômicas a adotar e implementar visando o fim do monopólio do comercio externo pelo Estado, através dos Armazens do Povo, e a abertura da economia ao mercado e a iniciativa privada, bem como a precursora privatização de empresas publicas.

 

Em finais de 1990, o Comite Central do PAIGC, partido único, na altura, lanca a discussão publica daquilo que chamou o Anteprojeto de Plataforma Programatica de Transicao para o pluralismo politico. Da discussão publica desse documento Juliano Augusto Fernandes toma parte ativa na Conferencia da Sociedade Civil, organizada para esse efeito.

 

Mais perto de nós, Cabo Verde realiza as suas primeiras eleições livres a 13 de Janeiro de 1991.

 

A Assembleia Nacional Popular cria, em finais de 1990, uma Comissão Eventual de Revisão Constitucional, com vista a adoção e consagração constitucional dos primeiros pilares jurídico-constitucionais em que assentariam os primeiros e tímidos eixos de reformas politicas, económicas e socioculturais.

 

Juliano Augusto Fernandes foi designado membro assessor, conjuntamente com outros conceituados juristas, dessa Comissão de Revisão Constitucional.

 

Em Maio de 1991, a Assembleia Nacional Popular aprova a 1 Lei de Revisão Constitucional que adota o pluralismo politico partidário com a queda do artigo 4 que vinha da constituição originaria de 16 de Maio de 1984 e que consagrava o PAIGC como o partido estado.

 

No capitulo relativo aos direitos liberdades e garantias e aos direitos sociais, culturais e políticos, destaca-se, essencialmente, a consagração constitucional dos direitos de liberdade constituição de associações, de liberdade sindical, de liberdade de imprensa, de greve, da reunião e manifestação, entre muitos outros.

 

Foi neste contexto de outorga e reconhecimento jurídico constitucional, pela primeira vez no nosso ordenamento que surgem, no mesmo ano, a Ordem dos Advogados, a Liga Guineense dos Direitos Humanos e os primeiros sinais de constituição de associações de carris politico partidário.



O nascimento da Liga Guineense dos Direitos Humanos

 

Fernando Gomes, assessor do Procurador Geral da Republica, entra em colisão com este ultimo, por discordar da utilização da Policia Judiciaria para fins outros que não os da investigação de noticias de crimes colhidas, por parte do Ministério Publico (alias, pelo Procurador Geral da Republica).

 

Na sequencia, apresenta, ao Procurador Geral da Republica, o seu pedido de demissão do cargo e das funções de assessor para que havia sido nomeado por aquele.

 

O Procurador Geral da Republica, resolve engavetar o pedido de demissão e, em contrapartida, profere despacho de exoneração do seu assessor.

 

Ato continuo, ordena ao, neste caso, seu ex-assessor, a desocupação da moradia de um prédio que lhe havia sido atribuído para nela residir, na qualidade de funcionário da Procuradoria Geral da Republica e suspende o pagamento de salários aquele. Perante a não desocupação voluntaria (não houve tempo para tal) incumbiu a Policia Judiciaria a missão de executar, coercivamente, a sua ordem de desocupação.

 

Papel que a Policia Judiciaria exerceu, de imediato, retirando da casa todos os haveres do Fernando Gomes e os colocando ao relento, em plena época de chuvas.

 

Disso da conta o Fernando Gomes aos seus dois colegas, Juliano Augusto Fernandes e Joaozinho Vieira Co. 

 

Os três, aproveitando-se de boas relações construídas com as autoridades governamentais, de então, nomeadamente por parte do Juliano Augusto Fernandes que já dava aulas na Faculdade de Direito de Bissau, era membro da comissão de revisão constitucional, colaborador do Gabinete de Estudos do Ministério da Justiça e tinha tomado parte ativa na Conferencia da Sociedade Civil sobre o Anteprojeto de Plataforma de Transição Politica, etc., entraram em cena perante, sobretudo, os então, Ministro da Agricultura, Eng.º Carlos Correia, quem, quase sempre, substituía, nas suas ausências, o Presidente do Conselho de Estado, por designação deste e o Ministro da Justiça, Eng.º. Mario Cabral.

 

Ao que conseguiram que o Governo, através do Ministério da Justiça, assumisse os custos com o arrendamento de uma casa para residência do Fernando Gomes e com os salários do mesmo.

 

Esta situação precipitou os três, por impulso do Fernando Gomes, a iniciarem o processo que desembocou na fundação da Liga Guineense dos Direitos Humanos, reunindo-se varias vezes na residência do Fernando Gomes, na Direção Geral das Alfandegas, no Gabinete de Estudos do Ministério da Justiça e em outros lugares. E foi, então, que nesse Gabinete de Estudos do Ministério da Justiça, que, a 12 de Agosto de 1991, foi realizada a assembleia constituinte da Liga Guineense dos Direitos Humanos, contando com a presença a participação de 12 membros. 

 

Facto curioso foi que duas pessoas que, por contingencia, assistiram ao ato, acabaram membros fundadores da Liga Guineense dos Direitos Humanos. Trata-se do Camaramen da Televisão Experimental da Guiné-Bissau, António Mindela dos Santos que esteve la para fazer a cobertura televisiva do evento e da Drª. Elsa Camacho, funcionaria do Ministério da Justiça, afeta, a época, ao Gabinete de Estudos, onde fora realizada a reunião.

 

Quatro dias antes, a 8 de Agosto, tinha a Ordem dos Advogados da Guiné-Bissau, sido fundada e escriturada nos Serviços do Notariado.

 

A fundação destas duas organizações associativas da sociedade civil, com destaque para a Liga Guineense dos Direitos Humanos, aliada a realização da Conferencia da Sociedade Civil sobre a Plataforma Programática de Transição, de um lado, e a participação, na Comissão de Revisão Constitucional de técnicos juristas, maioritariamente formados em Portugal, do outro lado, foram determinantes na definição do percurso que conheceu a transição para a democracia e o pluralismo politico na Guiné-Bissau, com maior incidência no preenchimento do teor dos sucessivos textos de leis de revisão constitucional, aprovadas no período de 1991-1993.

 

ACÇÕES ICÓNICAS DA LIGA GUINEENSE DOS DIREITOS HUMANOS

 

A fundação da Liga Guineense dos Direitos Humanos marcou, de forma vincada, o perfil da governação no pais, notadamente, no que a nova ordem constitucional estabelecida tange.

 

Desde logo, pelas corajosas e acutilantes denuncias de condutas e atos violadores dos direitos humanos e pelas ações persistentes de exigências punitivas e reparadoras, bem como consagrativas, em termos formais, de disposições legais, substanciando o reconhecimento e a atribuição de direitos reclamados, por um lado, e a extinção e desconstitucionalização de normas proibitivas e restritivas de direitos, por outro lado.

 

E, neste tocante, digno de registo o apoio e a assistência, moral e financeiro recebidos pela Liga Guineense dos Direitos Humanos da parte da Comunidade Internacional, sobretudo do Governo da Suécia, por intermédio da ASDI e da própria União Europeia. 

 

Se a memoria não me trai, ainda me lembro da primeira conferencia de imprensa que a Liga deu nas instalações da representação diplomática sueca, em Bissau, ou terá sido noutro local (Faculdade de Direito ou INEP), com o apoio financeiro da SIDA.

 

Dentre essas ações cabe enaltecer, entre outras, as seguintes:

 

1 – A luta pela extinção da pena de morte na Guiné-Bissau

 

2 – A pressão, por via de denuncias e manifestações, sobre os tribunais para o julgamento do caso Uducalom Sampa

 

3 – O caso dos deportados de Espanha

 

4 – O Caso da Virginia.

 

5 – Varias denuncias de violações de direitos humanos e abusos de autoridades, sobretudo por parte de agentes das forcas de ordem e segurança.