ESTUDO 40 ANOS DE IMPUNIDADE
Na madrugada de 2 de Março de 2009, o Presidente democraticamente eleito,
«Nino» Vieira, foi morto por soldados na sua residência, num ataque alegadamente
motivado por vingança: a morte de «Nino» teria sido a resposta ao assassinato,
horas antes, do chefe do Estado-Maior general das Forças Armadas, Tagmé Na
Waye, vítima de um atentado á bomba no quartel-general em Bissau.
As imagens dos restos mortais do Presidente da República foram exibidas na
Internet, espelhando a crueldade de uma sociedade ou de sectores que se sentem
autorizados a comportamentos sem qualquer baliza humana, invocando por vezes a
legitimidade da simples participação na Luta de Libertação Nacional.
O duplo atentado veio terminar da forma mais trágica anos de mau
relacionamento pessoal e institucional entre os dois homens mas afectou também
gravemente a vida pública e as instituições democráticas no seu conjunto.
Abundaram, e continuam a circular, as teorias mais díspares sobre os motivos e
a natureza dos atentados. Quaisquer que tenham sido os contornos – até hoje por
apurar – da eliminação do Presidente e do general Na Waye, o que importa, nessa
altura como hoje, sublinhar é que se tratou de um atentado grave à consolidação
do Estado de Direito e á estabilidade no nosso país.
A relação complexa de aliança
política e antagonismo pessoal com origem no «17 de Outubro» desembocou na
crescente desconfiança do Presidente da República, ao ponto de chamar para sua
guarda pessoal as milícias aguentas
treinadas na Guiné-Conacri, despertando memórias funestas na população da
guerra de 1998. Os antagonismos institucionais agudizaram-se com a vitória do
PAIGC nas legislativas de 2008, num triângulo de competição entre «Nino», Tagme
e Carlos Gomes Júnior.
A estabilidade do País passou a depender directamente do equilíbrio entre
estas três personalidades, numa coabitação improvável, com a consequência
adicional de promover de facto o Estado-Maior a órgão de soberania. O combate
ao narcotráfico funcionou nesse período como um factor adicional de erosão na
relação do triunvirato, na medida em que a determinação na luta contra as redes
da droga a operar em território guineense não era partilhada da mesma maneira
pelos três titulares.
O narcotráfico foi, assim, um ingrediente determinante para aquele que é
provavelmente o período de maior volatilidade institucional da nossa História.
Os efeitos perversos e desastrosos da invasão do terreno político pela
instituição militar ficaram bem patentes neste período, que de certa forma
preparou a interferência mais clara do Estado-Maior com o golpe de 12 de Abril
de 2012.
Tagme Naway e Nino Vieira
Recordemos que houve outros crimes envolvendo directamente as forças de
ordem e segurança, incluindo a execução de um agente da Polícia Judiciária,
Liberato Nunes, a 13 de Abril de 2008, por agentes da Polícia de Intervenção
Rápida, em retaliação pela morte acidental de um seu colega. Também neste caso
o processo aberto pelo Ministério Público não produziu conclusões que se
conheçam, nunca conheceu acusação, tendo os advogados de defesa e o Ministério
do Interior considerado que a única instância competente para julgar o caso era
o Tribunal Militar.
Esta decisão foi tomada ao arrepio do que deveria ser a correcta
interpretação e aplicação da nossa legislação: a morte de Liberato Nunes foi um
crime civil e não militar, apesar de ter sido imputado a militares ou
paramilitares. De novo, neste caso, se ignorou a natureza da opção do nosso
legislador: a justiça militar não foi criada como privilégio de um determinado
grupo; serve, isso sim, para julgar crimes específicos cuja natureza exigem a
apreciação por uma jurisdição militar.
Antes dos atentados, o Presidente «Nino» Vieira já tinha sido alvo de uma
tentativa de assassinato a 23 de Novembro de 2008, data em que foi visado pelos
militares também na sua residência. Desse ataque resultou um morto, um dos
guardas da residência do chefe de Estado. Convém recordar que, na altura, a
generalidade da classe política desvalorizou o incidente, arrumando os
acontecimentos numa inventona de «Nino» Vieira para se reabilitar politicamente
de uma derrota humilhante do partido que apoiou nas eleições legislativas de
Novembo de 2008.
A comissão de inquérito criada na sequência da morte do Presidente da
República deparou-se de imediato com a falta de colaboração dos militares,
sobretudo com a recusa em identificar os militares que estavam de serviço no
dia do assassinato de «Nino» Vieira – por regra, os primeiros suspeitos,
testemunhas ou declarantes. Os trabalhos escassos da comissão rapidamente foram
interrompidos, constatando-se a reserva dos membros da comissão em avançar com
a investigação, com receio óbvio de represálias por parte dos detentores do
poder real: os militares. O mesmo receio existiu de parte de testemunhas
cruciais sobre os acontecimentos de 2-3 de Março, incluindo da viúva do
Presidente, Isabel Romano Vieira.
Quanto ao atentado contra o CEMGFA, cuja investigação era também
competência da mesma comissão, motivou a criação de uma autodenominada comissão
militar, que se atribuiu as funções de comissão de gestão interina. Esta
comissão paralela tinha como função impor a ordem e disciplina nas Forças
Armadas. Por sua vez, essa comissão criou uma subcomissão de inquérito
alternativa para investigar a morte de Tagme Na Waie, sob a coordenação dos
Serviços de Contra-Inteligência Militar.
Esta subcomissão procedeu à detenção de cinco suspeitos: brigadeiro-general
Melcíades Gomes Fernandes, ex-chefe do Estado-Maior da Força Aérea, que
apresentava sinais de tortura conforme a LGDH denunciou na altura; Malam Candé,
afecto ao Estado-Maior; capitão Bacar Sanó, também submetido a tortura; Alberto
José Té; e capitão Domingos Monteiro Nbana Lem, afecto á Unidade de Marinha.
A comissão militar paralela, após conclusão do inquérito, remeteu as
conclusões para o Governo no dia 13 de Maio de 2009, que os reeenviou de
imediato para o Ministério Público. Houve, porém, contradição entre o número de
páginas dos processos: o Ministério Público confirmou a recepção de seis
páginas; o Estado-Maior declarou ter enviado 150 páginas de documentação e onze
cassetes. Quanto aos suspeitos, além de apresentarem sinais de terem sofrido
graves torturas, estiveram detidos ultrapassando todos os prazos de prisão
preventiva previstos no Código do Processo Penal (20 dias sem acusação
provisória de processo e 45 dias sem acusação defintiva), cf. artigo 168, alínea a) e b) ).
Em relação ao assassínio de Tagme Na Waie, o inquérito finalmente concluído
identificou três suspeitos, acusados em Fevereiro de 2012 pelos crimes do
homicídio qualificado e de danos e ofensas corporais graves. Relativamente à
morte do Presidente «Nino» Vieira, o Ministério Publico sustenta que falta
apenas a audição das principais testemunhas do processo que se encontram na
Europa. As autoridades judiciárias nacionais já enviaram um pedido de apoio
judiciário às autoridades portuguesas mas a questão de segurança continua a ser
o principal factor de bloqueio.
Volvidos poucos meses sobre a morte de «Nino» Vieira e de Tagme Na Waie, a
5 de Junho, surgiu o anúncio de mais uma tentativa de golpe de estado, pelos
Serviços de Informação do Estado, que reivindicaram os assassinatos – em
legítima defesa, conforme foi dito – de Hélder Magno Proença, antigo ministro
da Defesa e deputado da Nação, e mais três cidadãos, alegadamente o seu
motorista, o seu segurança pessoal, além do major Baciro Dabó, candidato às
presidenciais e então ministro da Administração Territorial, também antigo
responsável da Segurança de Estado.
Ainda em resposta à alegada tentativa de golpe, ocorreram várias detenções
de cidadãos que foram submetidos a tortura, incluindo o ex-primeiro-ministro Faustino
Imbali, o coronel Antero João Correia, ex-director da Segurança de Estado, Iaia
Dabó (irmão do major Baciro Dabó) e o músico Domingos Brosca. Os Serviços de
Informação do Estado divulgaram também uma lista com mais «suspeitos», todos
figuras próximas do Presidente assassinado, o que indiciava uma perseguição ou
intimidação de adversários políticos. O referido comunicado foi assinado apenas
pelo director-adjunto dos Serviços de Informação, uma vez que o director terá
recusado validar o documento, de onde não constava nenhuma indicação factual ou
material que consubstanciasse a acusação e tentativa de golpe de estado. Ao
arrepio das regras elementares de segredo de justiça, e cumprindo uma tradição
que vem de longe, foram também divulgadas gravações com conversas entre
alegados golpisas.
Cumprindo também com outra tradição nefasta, a Procuradoria-geral criou uma
comissão de inquérito exclusivamente mandatada para apurar as circunstâncias da
tentativa de golpe – excluindo, portanto, qualquer tentativa de explicar os
assassinatos de Hélder Proença e Baciro Dabó. Uma declaração do Governo usada
para fundamentar a criação desta comissão acolhia acriticamente o comunicado da
Segurança sobre os crimes, decidindo assim pela tese da tentativa de golpe
antes mesmo de haver investigação. No entanto, o Ministério Publico concluiu
que não houve golpe de estado e o processo foi parcialmente arquivado em Maio
de 2011. Este arquivamento afastou definitivamente a tese da tentativa de golpe
e retirou, portanto, qualquer fundamento para os assassinatos ocorridos sob a
capa da legítima defesa.
Baciro Dabo
Baciro Dabo
Conforme alertou na altura a LGDH, a vaga de assassinatos de 2009
«inaugurou uma nova estratégia de liquidação física dos adversários políticos
ou abertura de novo círculo de vingança cujas causas e alvos são desconhecidos
até à consumação do acto». A 26 de Dezembro de 2011 foi tornada pública mais
uma tentativa de golpe de estado durante a qual dois agentes da Forças de
Segurança foram assassinados sem motivos plausíveis.
O primeiro (sargento Vladimir Lenine Crato) aconteceu supostamente no
momento em que as autoridades de Segurança se dirigiram para a residência de
Roberto Ferreira Cacheu para desmantelar a alegada tentativa de golpe; no
decurso da operação foi atingido com disparos que lhe causaram ferimentos
graves, tendo sido mais tarde evacuado para Dacar (Senegal), onde morreu horas
depois. Este incidente despertou nos agentes da PIR um sentimento de vingança
que acabou com mais uma vítima: executaram sumariamente o major Iaia Dabó, a
quem acusaram de ser um dos autores materiais do assassinato do agente do seu
colega da PIR, Vladimir Crato.
O major Iaia Dabó foi executado quanto se tinha já disponibilizado para se
entregar às autoridades acompanhado por alguns dirigentes da sociedade civil
que haviam recebido garantias do Ministério do Interior quanto à sua rendição
de facto. Antes que Dabó pudesse render-se, porém, foi interceptado pelos
agentes da PIR e morto a tiro nas instalações desta subdivisão junto ao
Ministério do Interior. A PIR, à luz da nova
orgânica do Ministério do Interior adoptada no quadro da Reformas do Sector de
Segurança, integra a Policia da Ordem Publica de ponto de vista orgânico. No
entanto, a nível operacional funciona como uma força independente e à margem da
cadeia de comando, constituindo assim um perigo para a sociedade em geral e
mesmo para as outras forças de segurança.
Roberto Cacheu
Samba Djalo
Roberto Cacheu
Um grupo constituído
por mais de 22 militares, incluindo praças, oficiais subalternos e superiores,
foi ilegalmente preso nos calabouços da Base Aérea de Bissau e no
Aquartelamento Militar de Mansôa. Só mais tarde é que foram submetidos ao juiz
de instrução criminal para a legalização da prisão preventiva que aconteceu
apenas para 16 considerados pelo Ministério Público como supostos mentores do
mesmo golpe. Muitos destes detidos apresentavam sinais de espancamento e
ferimentos de pequena gravidade.
Recordemos que, ainda
em resultado da alegada tentativa de golpe, desapareceu Roberto Ferreira
Cacheu, antigo secretário de Estado de Cooperação e deputado da Nação. O seu
paradeiro continua até hoje por apurar, embora as autoridades de transição já
admitam que tenha sido morto. A cada dia que passa novas versões vão chegando
do casop, sem coerência lógica e fundamentos sólidos sobre o que aconteceu ao
deputado. Numa manifestação de usurpação de poderes e sem qualquer base
institucional ou legal, o Governo de Transição levou mais tarde à região de
Bula um grupo de que faziam parte vários diplomatas, para que pudessem
confirmar a existência da suposta sepultura de Roberto Ferreira Cacheu, facto
que afinal não foi confirmado.
Três meses depois do
alegado golpe de Dezembro de 2011, o coronel Samba Djalo, antigo chefe da
Contra-Inteligência Militar e ex-director-adjunto do Serviço de Informação do
Estado (actuais Serviços de Informação e Segurança, SIS), foi atingido
mortalmente por um grupo de indivíduos não identificados na sua residência em
Bissau, a 18 de Março de 2012. Tanto os processos relativos à morte de Iaia
Dabó como de Samba Djalo registaram evoluções mínimas, mesmo se no primeiro foi
identificado um suspeito, comandante da PIR.
O clima de total
impunidade em que operam as Forças de Defesa e Segurança ficou também patente
num episódio inaceitável em Julho de 2010, quando cinco agentes da Polícia de
Trânsito, incluindo quatro mulheres, foram espancados por um grupo de militares
na principal avenida de Bissau. Tudo começou quando um agente da Polícia
interseptou um individuo que seguia numa viatura em flagrante violação das
regras de trânsito. Minutos depois da interpelação do individuo - ligado ao
Estado-Maior General das Forças Armadas
chegou ao local um grupo de militares armados que desencadeou actos de
vandalismo contra os agentes da Policia de Trânsito causando-lhes ferimentos
graves. Além disso, conduziram um dos polícias até ao quartel, onde foi detido
e sujeito a humilhações durante várias horas, tendo apenas sido libertado por
intervenção dos responsáveis máximos do Ministério do Interior.
Em resposta ao
incidente, o Governo mandou instaurar um processo de inquérito no dia 7 de
Junho de 2010, com uma comissão composta por cinco membros das Forças Armadas e
de Segurança que não foi além de desenvolver uma operação de charme. Da sua
investigação não resultou nenhuma conclusão e ninguém foi considerado culpado
ou responsabilizado.
A política de
interferência e intimidação de outros órgãos de Estado, do poder judicial ou
simplesmente de facções rivais no seio dos militares ficou patente no decurso
da alegada sublevação militar de 1 de Abril de 2010. O antigo chefe do
Estado-Maior, vice-almirante José Zamora Induta, e o ex-chefe dos Serviços da
Contra-Inteligência Militar foram presos arbitrariamente nas instalações
prisionais militares em Bissau e Mansoa, a mando do Estado-Maior General das
Forças Armadas. Posteriormente, o processo contra aqueles oficiais foi
formalmente transferido para o Tribunal Superior Militar mas, na prática, as
visitas dos familiares, dos médicos e mesmo dos advogados eram admitidas sob
prévia autorização do chefe do Estado-Maior.
A corrida desenfreada para o poder, o enriquecimento ilícito decorrente do
tráfico de drogas, a insubordinação das Forças Armadas ao poder político e
consequentes atentados recorrentes à ordem constitucional criaram bases para a
anarquia e desordem que têm desestruturado claramente os alicerces do Estado
guineense, tornando-o incapaz de oferecer confiança aos cidadãos e assegurar a
efectivação da sua autoridade.
Enquanto a impunidade não for erradicada na Guiné-Bissau, os valores da
paz, democracia, do respeito pelos direitos humanos e do estado de direito, não
terão alicerces para se triunfaram.