4 de março de 2015

SEIS ANOS DEPOIS OS CONTORNOS DOS ASSASSINATOS POLITICOS CONTINUAM POR DESVENDAR


ESTUDO 40 ANOS DE IMPUNIDADE

Na madrugada de 2 de Março de 2009, o Presidente democraticamente eleito, «Nino» Vieira, foi morto por soldados na sua residência, num ataque alegadamente motivado por vingança: a morte de «Nino» teria sido a resposta ao assassinato, horas antes, do chefe do Estado-Maior general das Forças Armadas, Tagmé Na Waye, vítima de um atentado á bomba no quartel-general em Bissau.

As imagens dos restos mortais do Presidente da República foram exibidas na Internet, espelhando a crueldade de uma sociedade ou de sectores que se sentem autorizados a comportamentos sem qualquer baliza humana, invocando por vezes a legitimidade da simples participação na Luta de Libertação Nacional.

O duplo atentado veio terminar da forma mais trágica anos de mau relacionamento pessoal e institucional entre os dois homens mas afectou também gravemente a vida pública e as instituições democráticas no seu conjunto. Abundaram, e continuam a circular, as teorias mais díspares sobre os motivos e a natureza dos atentados. Quaisquer que tenham sido os contornos – até hoje por apurar – da eliminação do Presidente e do general Na Waye, o que importa, nessa altura como hoje, sublinhar é que se tratou de um atentado grave à consolidação do Estado de Direito e á estabilidade no nosso país.

A relação complexa de  aliança política e antagonismo pessoal com origem no «17 de Outubro» desembocou na crescente desconfiança do Presidente da República, ao ponto de chamar para sua guarda pessoal as milícias aguentas treinadas na Guiné-Conacri, despertando memórias funestas na população da guerra de 1998. Os antagonismos institucionais agudizaram-se com a vitória do PAIGC nas legislativas de 2008, num triângulo de competição entre «Nino», Tagme e Carlos Gomes Júnior.

A estabilidade do País passou a depender directamente do equilíbrio entre estas três personalidades, numa coabitação improvável, com a consequência adicional de promover de facto o Estado-Maior a órgão de soberania. O combate ao narcotráfico funcionou nesse período como um factor adicional de erosão na relação do triunvirato, na medida em que a determinação na luta contra as redes da droga a operar em território guineense não era partilhada da mesma maneira pelos três titulares.

O narcotráfico foi, assim, um ingrediente determinante para aquele que é provavelmente o período de maior volatilidade institucional da nossa História. Os efeitos perversos e desastrosos da invasão do terreno político pela instituição militar ficaram bem patentes neste período, que de certa forma preparou a interferência mais clara do Estado-Maior com o golpe de 12 de Abril de 2012.

                                            Tagme Naway e Nino Vieira
Recordemos que houve outros crimes envolvendo directamente as forças de ordem e segurança, incluindo a execução de um agente da Polícia Judiciária, Liberato Nunes, a 13 de Abril de 2008, por agentes da Polícia de Intervenção Rápida, em retaliação pela morte acidental de um seu colega. Também neste caso o processo aberto pelo Ministério Público não produziu conclusões que se conheçam, nunca conheceu acusação, tendo os advogados de defesa e o Ministério do Interior considerado que a única instância competente para julgar o caso era o Tribunal Militar.
Esta decisão foi tomada ao arrepio do que deveria ser a correcta interpretação e aplicação da nossa legislação: a morte de Liberato Nunes foi um crime civil e não militar, apesar de ter sido imputado a militares ou paramilitares. De novo, neste caso, se ignorou a natureza da opção do nosso legislador: a justiça militar não foi criada como privilégio de um determinado grupo; serve, isso sim, para julgar crimes específicos cuja natureza exigem a apreciação por uma jurisdição militar.
Antes dos atentados, o Presidente «Nino» Vieira já tinha sido alvo de uma tentativa de assassinato a 23 de Novembro de 2008, data em que foi visado pelos militares também na sua residência. Desse ataque resultou um morto, um dos guardas da residência do chefe de Estado. Convém recordar que, na altura, a generalidade da classe política desvalorizou o incidente, arrumando os acontecimentos numa inventona de «Nino» Vieira para se reabilitar politicamente de uma derrota humilhante do partido que apoiou nas eleições legislativas de Novembo de 2008.
A comissão de inquérito criada na sequência da morte do Presidente da República deparou-se de imediato com a falta de colaboração dos militares, sobretudo com a recusa em identificar os militares que estavam de serviço no dia do assassinato de «Nino» Vieira – por regra, os primeiros suspeitos, testemunhas ou declarantes. Os trabalhos escassos da comissão rapidamente foram interrompidos, constatando-se a reserva dos membros da comissão em avançar com a investigação, com receio óbvio de represálias por parte dos detentores do poder real: os militares. O mesmo receio existiu de parte de testemunhas cruciais sobre os acontecimentos de 2-3 de Março, incluindo da viúva do Presidente, Isabel Romano Vieira.
Quanto ao atentado contra o CEMGFA, cuja investigação era também competência da mesma comissão, motivou a criação de uma autodenominada comissão militar, que se atribuiu as funções de comissão de gestão interina. Esta comissão paralela tinha como função impor a ordem e disciplina nas Forças Armadas. Por sua vez, essa comissão criou uma subcomissão de inquérito alternativa para investigar a morte de Tagme Na Waie, sob a coordenação dos Serviços de Contra-Inteligência Militar.


Esta subcomissão procedeu à detenção de cinco suspeitos: brigadeiro-general Melcíades Gomes Fernandes, ex-chefe do Estado-Maior da Força Aérea, que apresentava sinais de tortura conforme a LGDH denunciou na altura; Malam Candé, afecto ao Estado-Maior; capitão Bacar Sanó, também submetido a tortura; Alberto José Té; e capitão Domingos Monteiro Nbana Lem, afecto á Unidade de Marinha.


A comissão militar paralela, após conclusão do inquérito, remeteu as conclusões para o Governo no dia 13 de Maio de 2009, que os reeenviou de imediato para o Ministério Público. Houve, porém, contradição entre o número de páginas dos processos: o Ministério Público confirmou a recepção de seis páginas; o Estado-Maior declarou ter enviado 150 páginas de documentação e onze cassetes. Quanto aos suspeitos, além de apresentarem sinais de terem sofrido graves torturas, estiveram detidos ultrapassando todos os prazos de prisão preventiva previstos no Código do Processo Penal (20 dias sem acusação provisória de processo e 45 dias sem acusação defintiva), cf. artigo 168, alínea a) e b) ).



Em relação ao assassínio de Tagme Na Waie, o inquérito finalmente concluído identificou três suspeitos, acusados em Fevereiro de 2012 pelos crimes do homicídio qualificado e de danos e ofensas corporais graves. Relativamente à morte do Presidente «Nino» Vieira, o Ministério Publico sustenta que falta apenas a audição das principais testemunhas do processo que se encontram na Europa. As autoridades judiciárias nacionais já enviaram um pedido de apoio judiciário às autoridades portuguesas mas a questão de segurança continua a ser o principal factor de bloqueio.


Volvidos poucos meses sobre a morte de «Nino» Vieira e de Tagme Na Waie, a 5 de Junho, surgiu o anúncio de mais uma tentativa de golpe de estado, pelos Serviços de Informação do Estado, que reivindicaram os assassinatos – em legítima defesa, conforme foi dito – de Hélder Magno Proença, antigo ministro da Defesa e deputado da Nação, e mais três cidadãos, alegadamente o seu motorista, o seu segurança pessoal, além do major Baciro Dabó, candidato às presidenciais e então ministro da Administração Territorial, também antigo responsável da Segurança de Estado.

Ainda em resposta à alegada tentativa de golpe, ocorreram várias detenções de cidadãos que foram submetidos a tortura, incluindo o ex-primeiro-ministro Faustino Imbali, o coronel Antero João Correia, ex-director da Segurança de Estado, Iaia Dabó (irmão do major Baciro Dabó) e o músico Domingos Brosca. Os Serviços de Informação do Estado divulgaram também uma lista com mais «suspeitos», todos figuras próximas do Presidente assassinado, o que indiciava uma perseguição ou intimidação de adversários políticos. O referido comunicado foi assinado apenas pelo director-adjunto dos Serviços de Informação, uma vez que o director terá recusado validar o documento, de onde não constava nenhuma indicação factual ou material que consubstanciasse a acusação e tentativa de golpe de estado. Ao arrepio das regras elementares de segredo de justiça, e cumprindo uma tradição que vem de longe, foram também divulgadas gravações com conversas entre alegados golpisas.

Cumprindo também com outra tradição nefasta, a Procuradoria-geral criou uma comissão de inquérito exclusivamente mandatada para apurar as circunstâncias da tentativa de golpe – excluindo, portanto, qualquer tentativa de explicar os assassinatos de Hélder Proença e Baciro Dabó. Uma declaração do Governo usada para fundamentar a criação desta comissão acolhia acriticamente o comunicado da Segurança sobre os crimes, decidindo assim pela tese da tentativa de golpe antes mesmo de haver investigação. No entanto, o Ministério Publico concluiu que não houve golpe de estado e o processo foi parcialmente arquivado em Maio de 2011. Este arquivamento afastou definitivamente a tese da tentativa de golpe e retirou, portanto, qualquer fundamento para os assassinatos ocorridos sob a capa da legítima defesa.

                                                                    Baciro Dabo

Conforme alertou na altura a LGDH, a vaga de assassinatos de 2009 «inaugurou uma nova estratégia de liquidação física dos adversários políticos ou abertura de novo círculo de vingança cujas causas e alvos são desconhecidos até à consumação do acto». A 26 de Dezembro de 2011 foi tornada pública mais uma tentativa de golpe de estado durante a qual dois agentes da Forças de Segurança foram assassinados sem motivos plausíveis.


O primeiro (sargento Vladimir Lenine Crato) aconteceu supostamente no momento em que as autoridades de Segurança se dirigiram para a residência de Roberto Ferreira Cacheu para desmantelar a alegada tentativa de golpe; no decurso da operação foi atingido com disparos que lhe causaram ferimentos graves, tendo sido mais tarde evacuado para Dacar (Senegal), onde morreu horas depois. Este incidente despertou nos agentes da PIR um sentimento de vingança que acabou com mais uma vítima: executaram sumariamente o major Iaia Dabó, a quem acusaram de ser um dos autores materiais do assassinato do agente do seu colega da PIR, Vladimir Crato.

O major Iaia Dabó foi executado quanto se tinha já disponibilizado para se entregar às autoridades acompanhado por alguns dirigentes da sociedade civil que haviam recebido garantias do Ministério do Interior quanto à sua rendição de facto. Antes que Dabó pudesse render-se, porém, foi interceptado pelos agentes da PIR e morto a tiro nas instalações desta subdivisão junto ao Ministério do Interior. A PIR, à luz da nova orgânica do Ministério do Interior adoptada no quadro da Reformas do Sector de Segurança, integra a Policia da Ordem Publica de ponto de vista orgânico. No entanto, a nível operacional funciona como uma força independente e à margem da cadeia de comando, constituindo assim um perigo para a sociedade em geral e mesmo para as outras forças de segurança.

                                                                 Roberto Cacheu

Um grupo constituído por mais de 22 militares, incluindo praças, oficiais subalternos e superiores, foi ilegalmente preso nos calabouços da Base Aérea de Bissau e no Aquartelamento Militar de Mansôa. Só mais tarde é que foram submetidos ao juiz de instrução criminal para a legalização da prisão preventiva que aconteceu apenas para 16 considerados pelo Ministério Público como supostos mentores do mesmo golpe. Muitos destes detidos apresentavam sinais de espancamento e ferimentos de pequena gravidade. 

Recordemos que, ainda em resultado da alegada tentativa de golpe, desapareceu Roberto Ferreira Cacheu, antigo secretário de Estado de Cooperação e deputado da Nação. O seu paradeiro continua até hoje por apurar, embora as autoridades de transição já admitam que tenha sido morto. A cada dia que passa novas versões vão chegando do casop, sem coerência lógica e fundamentos sólidos sobre o que aconteceu ao deputado. Numa manifestação de usurpação de poderes e sem qualquer base institucional ou legal, o Governo de Transição levou mais tarde à região de Bula um grupo de que faziam parte vários diplomatas, para que pudessem confirmar a existência da suposta sepultura de Roberto Ferreira Cacheu, facto que afinal não foi confirmado.

Três meses depois do alegado golpe de Dezembro de 2011, o coronel Samba Djalo, antigo chefe da Contra-Inteligência Militar e ex-director-adjunto do Serviço de Informação do Estado (actuais Serviços de Informação e Segurança, SIS), foi atingido mortalmente por um grupo de indivíduos não identificados na sua residência em Bissau, a 18 de Março de 2012. Tanto os processos relativos à morte de Iaia Dabó como de Samba Djalo registaram evoluções mínimas, mesmo se no primeiro foi identificado um suspeito, comandante da PIR.

O clima de total impunidade em que operam as Forças de Defesa e Segurança ficou também patente num episódio inaceitável em Julho de 2010, quando cinco agentes da Polícia de Trânsito, incluindo quatro mulheres, foram espancados por um grupo de militares na principal avenida de Bissau. Tudo começou quando um agente da Polícia interseptou um individuo que seguia numa viatura em flagrante violação das regras de trânsito. Minutos depois da interpelação do individuo - ligado ao Estado-Maior General das Forças Armadas  chegou ao local um grupo de militares armados que desencadeou actos de vandalismo contra os agentes da Policia de Trânsito causando-lhes ferimentos graves. Além disso, conduziram um dos polícias até ao quartel, onde foi detido e sujeito a humilhações durante várias horas, tendo apenas sido libertado por intervenção dos responsáveis máximos do Ministério do Interior.

Em resposta ao incidente, o Governo mandou instaurar um processo de inquérito no dia 7 de Junho de 2010, com uma comissão composta por cinco membros das Forças Armadas e de Segurança que não foi além de desenvolver uma operação de charme. Da sua investigação não resultou nenhuma conclusão e ninguém foi considerado culpado ou responsabilizado.

                                                             Samba Djalo




A política de interferência e intimidação de outros órgãos de Estado, do poder judicial ou simplesmente de facções rivais no seio dos militares ficou patente no decurso da alegada sublevação militar de 1 de Abril de 2010. O antigo chefe do Estado-Maior, vice-almirante José Zamora Induta, e o ex-chefe dos Serviços da Contra-Inteligência Militar foram presos arbitrariamente nas instalações prisionais militares em Bissau e Mansoa, a mando do Estado-Maior General das Forças Armadas. Posteriormente, o processo contra aqueles oficiais foi formalmente transferido para o Tribunal Superior Militar mas, na prática, as visitas dos familiares, dos médicos e mesmo dos advogados eram admitidas sob prévia autorização do chefe do Estado-Maior.

A corrida desenfreada para o poder, o enriquecimento ilícito decorrente do tráfico de drogas, a insubordinação das Forças Armadas ao poder político e consequentes atentados recorrentes à ordem constitucional criaram bases para a anarquia e desordem que têm desestruturado claramente os alicerces do Estado guineense, tornando-o incapaz de oferecer confiança aos cidadãos e assegurar a efectivação da sua autoridade.



Enquanto a impunidade não for erradicada na Guiné-Bissau, os valores da paz, democracia, do respeito pelos direitos humanos e do estado de direito, não terão alicerces para se triunfaram.