28 de fevereiro de 2014

OBSERVAÇÕES E RECOMENDAÇÕES PRELIMINARES DA MISSÃO DA RELATORA ESPECIAL DAS NAÇÕES UNIDAS PARA POBREZA EXTREMA E DIREITOS HUMANOS - Magdalena Sepúlveda

Missão à Guiné-Bissau de 24 de fevereiro à 1º de março de 2014

OBSERVAÇÕES E RECOMENDAÇÕES PRELIMINARES

Membros da imprensa, senhoras e senhores,

Eu vos falo hoje, ao término da minha missão oficial à Guiné-Bissau a convite do Governo, de 24 de fevereiro à 1º de março de 2014. Meu objetivo durante esta visita foi avaliar a situação daquelas pessoas vivendo em pobreza extrema no país, e a seguinte declaração contém as minhas descobertas preliminares e recomendações. Eu gostaria de enfatizar que a declaração de hoje cobre todos os temas urgentes dos quais eu espero que sejam tratados pelo Estado como prioridade. Eu apresentarei meu relatório final à 25ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em junho de 2014. O relatório final incluirá minhas recomendações de maneira mais detalhada, para apoiar o Governo a melhorar as vidas das pessoas vivendo em situação de pobreza.  

Dado o caráter imediato de alguns dos temas levantados comigo por várias partes interessadas, eu me sinto compelida a tratá-los aqui hoje, e não esperar pela consideração dos temas no meu relatório final da missão ao país, para junho de 2014. Embora eu reconheça que muito mais pode ser dito sobre uma série de assuntos, incluindo o encorajamento de políticas públicas e programas, essa é uma escolha deliberada. Como tal, os seguintes comentários são – e devem ser relatados como – um trabalho em curso.

Introdução

Durante a minha estadia, reuni-me com várias autoridades governamentais, incluindo o Presidente de Transição Serifo Nhamadjo; o Primeiro-Ministro de Transição Rui Duarte de Barros; o Ministro da Justiça Mamadú Saido Baldé; o Ministro da Economia e Integração Regional Soares Sambú; o Ministro da Agricultura Nicolau dos Santos; a Ministra das Mulheres, Família e Solidariedade Social Gabriela Fernandes; o Secretário de Estado da Segurança Alimentar Bilony Nhama Nantamba Nhasse; o Ministro da Educação Nacional, Juventude, Cultura e Desportos Alfredo Gomes Júnior; a Presidenta da Comissão Nacional de Direitos Humanos Aida Injai Fernandes; e a Comissão Nacional de Planeamento e Coordenação Estratégica.
Eu também me reuni com representantes de organizações internacionais, da comunidade de doadores, instituições financeiras internacionais e uma gama de organizações da sociedade civil.

Ademais, reuni-me com comunidades vivendo em condições de pobreza na região de Biombo, sectores de Quinhamel, Mansôa, Bissorã, Mansaba e Nhacra. Eu visitei várias instalações de tratamento de saúde, tais como o Hospital de Mansôa e o Projeto Saúde Bandim na região de Quinhamel (tabanca de Bucumul).  
Eu gostaria de agradecer o Governo da Guiné-Bissau pela sua excelente cooperação durante a visita. Eu aprecio muito o espírito de abertura com o qual eu pude dialogar com as autoridades.

Eu me reuni com o Representante Especial do Secretário-Geral José Manuel Ramos-Horta, o Representante Especial Adjunto do Secretário-Geral e Coordenador Residente Gana Fofang, e outros representantes da Equipa Nacional das Nações Unidas. Eu gostaria de estender meus agradecimentos mais sinceros à Secção de Direitos Humanos do Gabinete Integrado das Nações Unidas para a Consolidação da Paz na Guiné-Bissau (UNIOGBIS), pela sua excelente colaboração e assistência a esta missão.

Estou em dívida com todas as pessoas que tomaram seu tempo para reunirem-se comigo, uma vez que as suas contribuições à minha visita foram incomensuráveis. Eu fiquei particularmente tocada durante a missão, pelo engajamento vibrante e ativo da sociedade civil trabalhando em direitos humanos e temas relacionados à pobreza. Eu sou especialmente agradecida à todas as pessoas que compartilharam as suas experiências pessoais, por vezes traumáticas, de luta contra a pobreza extrema e exclusão social. 

Senhoras e senhores,

Desde o final do conflito de quase uma década pela independência em 1973, a Guiné-Bissau experimentou instabilidade política quase que constantemente, culminando na guerra civil de 1998-1999, a qual deixou um quarto da população refugiada. O conflito causou severas rupturas econômicas e destruição generalizada da infraestrutura pública, um impacto do qual o país ainda recupera-se. Desde a sua independência, nenhum governo da Guiné-Bissau completou o período de seu mandato. A Guiné-Bissau tem enfrentado uma instabilidade contínua, caracterizada por recorrentes assassinatos de altos funcionários estatais, golpes de estado, perseguições políticas e renúncias forçadas de agentes públicos, sendo que a última eleição presidencial foi interrompida por um golpe militar em 12 de abril de 2012. Essa instabilidade resulta em um declínio no nível de desenvolvimento, com uma complexa interligação de pobreza, reforço de normas sociais tradicionais e culturais que prejudicam e limitam o acesso das comunidades e famílias aos serviços básicos.   
 
A proporção da população vivendo em situação de pobreza monetária aumentou notavelmente entre 2002 e 2010. O número de pessoas vivendo com menos de dois dólares ao dia aumentou em quatro pontos percentuais, chegando a 69 porcento (DENARP II, 2011, p. 7). O aumento da pobreza extrema (menos de um dólar ao dia) foi ainda maior, subindo de 21 a 33 porcento. A grande disparidade entre a capital e o resto do país também foi incrementada entre 2002 e 2010: a pobreza extrema aumentou de 25 a 40 porcento nas regiões, em comparação ao aumento de 9 a 13 porcento em Bissau.

Os níveis de pobreza extrema e absoluta são excessivamente altos fora da capital. Entre um terço e metade da população vive com menos de um dólar ao dia nas regiões, e a pobreza absoluta é endémica no campo. Até na região com melhor desempenho, Bolama/Bijagós, quase metade da população vive com menos de 2 dólares ao dia, e em Gabu a pobreza absoluta é quase universal, afetando 84 porcento da população. A vulnerabilidade da população é caracterizada pela pobreza absoluta: uma extrema ausência de recursos financeiros restringe a habilidade das comunidades em prover as crianças com assistência de saúde, educação e um ambiente protegido.

Esse ciclo de instabilidade e consequente declínio social foi ilustrado recentemente pelo golpe de estado de abril de 2012. A Guiné-Bissau foi e continua dependente fortemente de assistência externa ao desenvolvimento, que representa cerca de 15 porcento do seu PIB. Em 2010, a assistência externa chegou a aproximadamente 57 porcento do total da receita governamental, financiando mais de 50 porcento do total de gastos da Guiné-Bissau. Ainda que o início desta década haja testemunhado algumas melhorias dos indicadores sociais, informações recolhidas no último ano mostram um decréscimo em vários âmbitos após o golpe, resultando na suspensão de vários programas de ajuda externa ao desenvolvimento. A Guiné-Bissau será incapaz de atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio em 2015. 

Reconhecendo que este país relativamente jovem tem sofrido de recursos limitados, a negligência de investimentos em áreas críticas, tais como saúde e educação, tem-se agravado nos últimos anos, afetando drasticamente as chances de desenvolvimento, atrasando o país. Como resultado do limitado orçamento para gastos gerais do governo (22 porcento do PIB, de acordo a estimativas – Relatório do FMI de maio de 2010), o montante alocado para serviços sociais básicos está entre os mais baixos da África ocidental. Em 2006, por exemplo, menos de quatro porcento dos gastos governamentais foram destinados a educação (10 dólares per capita), contra 6,7 porcento (14 dólares per capita) no Níger. Em 2007, o gasto público com saúde foi estimado em quatro dólares per capita na Guiné-Bissau, em contraste com a média de 11 dólares per capita de países com baixa renda e 34 dólares per capita da região ocidental africana (Estatísticas da Saúde Mundial, OMS, 2010). Em 2011, o orçamento alocado para a saúde e educação representou meramente 20,7 porcento do geral, contrariando a recomendação internacional de 40 porcento.

Tomo nota que a Guiné-Bissau esteja comprometida em reforçar os seus recursos legais e, em anos recentes, haja adotado leis e tratados internacionais importantes. A assinatura do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo aos Procedimentos de Comunicação, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências e o seu Protocolo Facultativo, no ano de 2013, e do Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, no ano de 2009, representam progressos importantes em várias áreas relacionadas ao meu mandato, não obstante, insto o Governo a completar o processo de ratificação desses documentos.  
A Guiné-Bissau tem trabalhado ativamente junto aos órgãos de monitoramento de direitos humanos, tendo participado com sucesso do processo de Revisão Periódica Universal (RPU); envolvendo-se na revisão dos Órgãos de Tratados das Nações Unidas; e estendendo convite permanente a todos os Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. De acordo às recomendações da RPU, do Comité sobre Direitos das Crianças e o Comité para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, e com o apoio técnico e financeiro da UNIOGBIS e parceiros da Equipa Nacional das Nações Unidas, o Governo avançou ao estabelecer marcos legais e de políticas públicas. 

Em 2011, o Governo adotou a Lei que visa prevenir, combater e reprimir a excisão feminina (Lei nº. 14/2011), e a Lei da prevenção e combate ao tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças (Lei nº. 12/2011). O Governo também concluiu a Política Nacional para Igualdade e Equidade de Género (PNIEG), um marco para promover, coordenar e dar seguimento a equidade em todos os sectores. A colaboração com o Comité Parlamentar Especializado sobre Mulheres e Crianças resultou na adoção pela Assembleia Nacional Popular, da Lei contra a Violência Doméstica, em Julho de 2013, ainda que falte a promulgação oficial da Presidência. Recentemente, o Governo de Transição aprovou o Plano Nacional de Ação contra a Violência com base no Género (2014-2016), após um amplo diálogo com organizações de mulheres, defensoras e defensores de direitos humanos, organizações da sociedade civil e parceiro das Nações Unidas.

No entanto, são necessárias medidas adicionais para a incorporação completa da legislação e normas internacionais na implementação de políticas públicas nacionais. A legislação frequentemente não se traduz em garantia de direitos para muitas pessoas Bissau-Guineenses. Há lacunas graves de implementação legal, incluindo a falta de promulgação da Lei contra a Violência Doméstica.

Tomo nota dos esforços envidados para assegurar que a Guiné-Bissau tenha uma Comissão Nacional de Direitos Humanos que seja verdadeiramente independente, com suporte financeiro e recursos humanos para atuar. Nesse sentido, apelo ao Estado que garanta a total adequação do novo Estatuto da Comissão Nacional de Direitos Humanos aos Princípios de Paris. Também são necessários investimentos significativos em recursos humanos e financeiros, particularmente através da descentralização dos serviços de maneira que estejam acessíveis à comunidade.

Mulheres e raparigas
A desigualdade de género e a discriminação estão entre os principais fatores de pobreza e vulnerabilidade, particularmente nas zonas rurais. Esta é uma sociedade extremamente patriarcal, que historicamente tem sido indiferente aos direitos e às necessidades das mulheres. Visitando as comunidades rurais, fiquei surpreendida ao constatar que o bem-estar e a economia das comunidades e das famílias dependem inteiramente das mulheres.
As mulheres e as raparigas são responsáveis somente pelo trabalho doméstico não remunerado, como coletar água e lenha, cozinhar e cuidar de crianças e doentes, e elas são também as principais fornecedoras de alimentação e de recursos financeiros. Ainda assim, elas têm pouco controle sobre os recursos internos ou sobre o planeamento familiar. Apesar de serem as principais trabalhadoras da terra como agricultoras e produtoras, a terra não lhes pertence. Pelo contrário, elas são restringidas a direitos fundiários secundários, e o direito de uso da terra é obtido apenas através dos seus maridos e de outros membros masculinos da família.

A elevada taxa de pobreza entre as viúvas está muitas vezes relacionada com a discriminação baseada na lei e nos costumes: após a morte do marido, a viúva não herda o seu terreno nem os seus recursos, os quais passam a estar sob a responsabilidade da família do marido. Apesar de serem as principais trabalhadoras da terra, produtoras de alimentos e dos recursos advindos, as mulheres solteiras, viúvas ou abandonadas têm menos acesso à terra e menos oportunidades económicas. Sem direitos garantidos, acesso à terra ou tampouco recursos produtivos, as mulheres rurais podem facilmente cair numa situação de pobreza mais acentuada, e enfrentar desafios ainda maiores para atingir o mesmo nível de subsistência para as suas famílias.

As disparidades e a falta de oportunidades para as mulheres podem ser encontradas em todas as áreas e setores. As mulheres e raparigas carregam o fardo de cuidar e prover as famílias em situação de pobreza extrema, e a sua recompensa por uma vida de esforço incansável é a denegação completa dos seus direitos, tais como o direito à educação, à saúde e à integridade física.

Em comparação aos homens, as mulheres sofrem com menos acesso aos serviços de saúde, maior incidência de HIV/SIDA, níveis inferiores de escolarização e alfabetização, renda reduzida, taxas mais altas de desemprego e maiores dificuldades de superação da pobreza.

Para agravar mais a sua situação, há uma prevalência generalizada de violência sexual com base no género no país, e um alto nível de impunidade. Em todo o país, as mulheres são vítimas de tais abusos, sem acesso à proteção, justiça ou medicamentos. A violência física, psicológica e sexual contra as mulheres é generalizada, mas continua sendo pouco denunciada. A violência doméstica raramente é levada ao conhecimento das autoridades judiciais. As normas culturais e os tabus, a ausência de agentes de segurança e de recursos económicos adequados, muitas vezes bloqueiam qualquer possibilidade de procurar reparação e justiça para os responsáveis de tais atos.
A mutilação genital feminina (MGF), a qual constitui uma agressão à integridade física das mulheres e raparigas, muitas vezes violando o seu direito à saúde, também ocorre de maneira generalizada em certas comunidades. A prevalência dessa prática na Guiné-Bissau também está diretamente ligada à pobreza. O aumento do número de casos notificados reflete um retrocesso inaceitável nos direitos das mulheres. Ao mesmo tempo em que louvo as medidas tomadas nos últimos anos, tais como a Lei que visa prevenir, combater e reprimir a excisão feminina, a Declaração adotada pelos Imames após a Conferência Internacional Islâmica de 2012 para o Abandono da Mutilação Genital Feminina, ao igual que a assinatura simbólica de uma fatwa condenando a MGF, deve-se abrir mão de todos os recursos para garantir que MGF seja erradicada na prática.

As mulheres jamais poderão ser iguais ou desfrutar dos seus direitos enquanto persistir a violência com base no género. Ainda que eu recomende a aprovação da Lei contra a Violência Doméstica e da Lei contra a Mutilação Genital Feminina. Devem ser envidados esforços adicionais para assegurar que essas mesmas leis sejam aplicadas na prática. As comunidades na Guiné-Bissau devem ser sensibilizadas sobre a existência dessas leis, e as autoridades locais devem estar à altura de fazer cumprir a lei sempre que necessário. Campanhas de sensibilização e educação também serão necessárias para pôr fim às normas culturais discriminatórias e abusivas, às praticas prejudiciais e aos estereótipos, em conformidade com a Convenção sobre a Eliminação da Violência Contra as Mulheres. Tais estereótipos são altamente prejudiciais e estão na raiz de grande parte da violência, pobreza e privação de direitos que as mulheres enfrentam – entretanto esses estereótipos não são inevitáveis ou estáticos. Através de ações coordenadas de educação, eles podem e devem ser combatidos.

O nível extremamente elevado de mortalidade materna no país também constitui uma situação alarmante. A porcentagem de mortalidade materna da Guiné-Bissau é a oitava mais elevadas do mundo, com uma estimativa de 790 óbitos maternos a cada 100.000 nascidos. É deplorável que em 2014, morram duas mulheres por dia ao dar à luz. Nacionalmente, seis em cada dez mulheres não têm acesso a atenção qualificada durante o parto, um dos fatores mais importantes para ultrapassar as complicações durante e após dar à luz. Instalações insalubres e degradadas, escassez crítica de pessoal de saúde, um sistema de fornecimento de medicamentos inadequado, barreiras geográficas, e o custo inacessível permanecem como maiores obstáculos de acesso ao sistema de saúde.

Outros fatores que impactam o direito à saúde e à educação das mulheres são a prevalência de casamentos forçados e gravidez precoce. Em 2011, 31 porcento das mulheres com idades entre 20-24 anos tinham dado à luz pela primeira vez antes de atingir os 18 anos de idade. A taxa de gravidez precoce é levemente maior entre adolescentes, 137 nascimentos por 1.000 jovens entre 15 e 19 anos (fonte: UNICEF, Situação das Crianças no Mundo, 2013). Em 2012, sete por cento das mulheres com idades entre 20 e 24 anos tinham-se casado antes dos 15 anos, e 22 por cento antes de atingirem os 18 anos de idade (fonte: UNICEF, Estado das Crianças do Mundo, 2013). Há muito por fazer para sensibilizar alguns grupos étnicos sobre o impacto negativo dessas práticas tradicionais ao bem-estar das mulheres. As autoridades do Estado, os profissionais de saúde, e os agentes de segurança devem demonstrar um forte compromisso para erradicar todas as formas de práticas tradicionais nocivas.

O HIV/SIDA continua sendo um problema considerável na Guiné-Bissau e a ter um impacto desproporcional sobre as mulheres. Enquanto as estimativas conservadoras colocam a taxa de prevalência nacional entre adultos em 5,3 porcento, as mulheres sofrem de forma desproporcional em relação aos homens: 6,9 porcento entre as mulheres contra 2,4 porcento. Essas taxas são mais elevadas do que a prevalência do HIV nas regiões da África Central e Ocidental. A suspensão do programa do Fundo Global teve um grande impacto em 2013, pois o país sofreu com a falta medicamentos antirretrovirais, kits de testes e programas de tratamento para prevenir a transmissão de mãe para filho. Devido à falta de coleta de dados no ano anterior e a diminuição correspondente nos programas de abordagem do HIV/SIDA, as taxas atuais provavelmente subestimam a verdadeira dimensão do problema. Devem ser tomadas medidas adicionais para garantir que a população tenha conhecimentos mais abrangentes e corretos sobre a prevenção e o tratamento do HIV/SIDA, e que sejam tomadas todas as medidas possíveis para a sua prevenção.

Apesar de constituir o pilar da sociedade guineense, as mulheres na Guiné-Bissau continuam a estar sub-representadas nos postos de tomada de decisão, colocando o país entre os estados com pior desempenho da CEDEAO nesse quesito. O atual Governo de Transição inclui apenas duas mulheres (comparadas com 28 homens), representando 7,4 porcento do total da população num país onde as mulheres perfazem 51,5 porcento da população. Esta sub-representação grave reflete-se também a nível local, da comunidade e do núcleo familiar, onde as mulheres estão em grande parte impossibilitadas de participar de forma significativa nos processos de tomada de decisão.

O país não pode progredir em áreas cruciais como a redução da pobreza, o desenvolvimento sustentável ou o gozo dos direitos humanos, se não houver medidas significativas para garantir o estatuto de igualdade da mulher na sociedade. Essa não é apenas uma questão básica de justiça e direitos humanos, trata-se também de um pré-requisito essencial para a melhoria das vidas de todas as pessoas na Guiné-Bissau. A experiência em vários países demonstrou que o empoderamento das mulheres é um fator chave no crescimento económico e desenvolvimento. Este esforço deve começar já, sem qualquer atraso. Hoje, darei algumas recomendações não exaustivas para ações prioritárias a esse respeito.

A fim de progredir na luta contra a mortalidade materna e de respeitar o direito das mulheres ao mais alto nível possível de saúde, as mulheres devem ter acesso garantido aos serviços de saúde reprodutiva e aos cuidados de saúde pré-natal e pós-natal. Ambos acessos, físico como financeiro, devem ser cuidadosamente prestados, eliminando por exemplo taxas a usuários e fornecendo serviços de atenção de saúde mais próximos das comunidades, especialmente nas áreas rurais.

A participação política das mulheres em todos os níveis deve ser melhorada e apoiada sem demora. Embora a presença igualitária das mulheres nos órgãos de tomada de decisão seja apenas um primeiro passo à igualdade de género, é um passo necessário para assegurar que as vozes das mulheres sejam ouvidas em todos os assuntos que lhes afetem. Devem ser tomadas medidas críticas antes das próximas eleições, como uma questão de prioridade, caso contrário, será perpetuada a falta de poder político das mulheres. Apesar do curto espaço de tempo antes das eleições, deve ser adotado um marco jurídico para a igualdade de género nas eleições, apoiado por todos os partidos políticos e pelo Governo de Transição. A oportunidade e o resultado, são ambos cruciais: a proporção de mulheres não deve ser aumentada somente nas listas partidárias, mas também entre os cargos eleitos. Para isso, parece ser inevitável que o governo e os partidos políticos implementem cotas como um meio para acelerar o acesso das mulheres aos postos de tomada de decisão.

Não obstante, enquanto que as cotas podem garantir que as mulheres estejam presentes no parlamento, não há garantias que as mulheres serão capazes de usar esse poder de maneira eficaz. Considerando o histórico limitado de mobilização das mulheres e a integração da mulher na vida política do país, medidas imediatas devem ser tomadas para fornecer educação, liderança e outras estratégias para impulsionar o empoderamento das mulheres. Dada a constante instabilidade política, isso deveria engajar as mulheres e raparigas na prevenção e resolução de conflitos, de acordo com a Resolução 1325 do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Seria particularmente importante prestar todo o apoio necessário (financeiro e outros) às redes de mulheres e organizações da sociedade civil, para assegurar que os esforços levados a cabo partam da base para cima.

Adicionalmente, a carga de trabalho doméstico não remunerado que as mulheres desempenham deve ser compartilhada e aliviada, para que elas sejam capazes de participar nos fóruns de tomada de decisão, de grupos comunitários à assembleia nacional.
Há numerosos exemplos de países desenvolvidos, incluindo em situação de pós-conflito, que conseguiram melhorar a participação política das mulheres exponencialmente e em um curto espaço de tempo. Eu sugiro que a Guiné-Bissau aprenda desses esforços ao encarar os seus desafios, embora as suas medidas devam ser escolhidas cuidadosamente, embasadas nos contextos social, político e cultural.

Depois das eleições, o novo Governo haverá de priorizar a garantia da igualdade das mulheres em todas as esferas da vida, consolidando um marco legal no qual o papel da mulher em todas as instâncias de decisão, da Comissão Nacional de Eleições aos governos locais, seja incrementado, facilitado e apoiado. A revisão das leis de herança, posse e propriedade da terra também serão uma tarefa urgente e absolutamente essencial para o novo governo, ao buscar direitos iguais para mulheres quanto à terra e meios de produção, pré-requisitos para o empoderamento económico e superação da pobreza.

Magdalena Sepúlveda


 
Crianças 

A taxa de mortalidade infantil de crianças com menos de cinco anos na Guiné-Bissau é a sétima mais alta do mundo, com 161 óbitos a cada 1000 recém nascidas em 2011. Tragicamente, uma em cada 10 crianças morre antes do seu primeiro ano de vida, enquanto que uma em cada seis crianças morre antes de completar cinco anos de idade.

As principais causas de morte são complicações pré-natal, malária, infecção respiratória aguda e diarreia    todas facilmente preveníveis. Além disso, a malnutrição, que sempre tem sido o maior problema de saúde na Guiné-Bissau, continua sendo uma das principais causas subjacentes de mortalidade infantil: 27,4 porcento das crianças com menos de cinco anos sofrem de má nutrição crónica, enquanto que 6,5 porcento sofreram má nutrição aguda. Em 2013, a situação deteriorou-se ainda mais, parte por causa da insegurança alimentar, afetando principalmente crianças de seis a 59 meses de vida. Apesar de uma melhora significativa quanto à prevalência do aleitamento materno (de 38 a 67 porcento entre 2010 e 2012), as práticas de alimentação infantil são uma das causas para essa situação de subnutrição, especialmente para bebés e crianças pequenas.

O trabalho infantil prevalece – em 2010, 57 porcento de crianças de cinco a 14 anos são exploradas em trabalho infantil (Relatório sobre o Desenvolvimento Humano – PNUD 2013). Isso reflete o desespero das necessidades económicas de várias famílias na Guiné-Bissau, assim mesmo, o trabalho infantil apenas perpetua a pobreza a médio e longo prazo, uma vez que as crianças não têm oportunidade de receber uma educação adequada. Estudos substanciais devem ser desenvolvidos para avaliar a viabilidade da implementação paulatina de alguns mecanismo de proteção social, ao menos aos membros da sociedade em situação de maior vulnerabilidade, sendo que essas medidas podiam reduzir significativamente os incentivos para o trabalho infantil, garantir em certa medida a segurança alimentar e a promoção de medidas para a inclusão social. Enquanto esses passos reduziriam significativamente o trabalho infantil, também seriam críticos para garantir segurança alimentar e promover inclusão social.

Senhoras e senhores,
A Guiné-Bissau é um país excepcionalmente jovem, com 65 porcento de população com menos de 25 anos de idade. Portanto, o país deve buscar a melhoria do bem-estar das gerações mais jovens, que são o futuro do país. Medidas para implementar o direito e dar educação para todas as crianças e jovens são particularmente essenciais. Como uma questão de prioridade, o Estado deve assegurar que todas as crianças em todas as Regiões do país possam gozar seu direito absoluto ao ensino primário obrigatório e gratuito, através de escolas de alta qualidade, acessíveis e sem custos adicionais. Há de empreenderem-se, com urgência, medidas proactivas para atingir esse fim. O país deve dar prioridade as suas crianças, a restruturação do sistema de ensino é uma condição necessária para o desenvolvimento. A saúde de crianças e mães também tem que ser tratada como prioritária. Durante a minha visita, eu me reuni com profissionais do ensino, da medicina e enfermagem, que trabalham incansavelmente para o seu povo, apesar de ficarem sem receber salários por vários meses. Eu recomendo os seus esforços, mas faço um apelo ao Estado para garantir que profissionais de sectores essenciais, como a saúde e educação, recebam seus salários de maneira consistente, como uma questão prioritária.
Todas as autoridades do Estado devem atuar com a visão de garantir que as crianças, jovens, e as futuras gerações tenham uma vida melhor. Medidas de curto prazo, decisões de alcance limitado com vistas a satisfação de interesses pessoais sobre a construção da nação e aproveitamento universal das oportunidade e direitos, ameaçarão gravemente o futuro do país e não garantirão a estabilidade política e desenvolvimento equitativo, o desenvolvimento sustentável que o povo da Guiné-Bissau merece.

Senhoras e senhores
O país tem uma oportunidade de progredir. Contudo, isso depende de um acordo de visão comum, uma visão que mova os políticos nacionais para longe de disputas de poder a curto prazo e alianças oportunistas, ao invés de avançar em direção a projetos de bem-estar de toda a sociedade – em particular da maioria da população que vive na situação odiosa de pobreza.
Para assegurar o desenvolvimento sustentável do país, é essencial lutar contra a impunidade e fazer com que as autoridades verdadeiramente prestem contas. Para assegurar medidas efectivas para a justiça, remediação e reconciliação na sociedade, a Guiné-Bissau deveria considerar  seriamente a criação de uma comissão de inquérito internacional, apoiada pelas Nações Unidas. A coesão social, paz e estabilidade também dependem da existência do estado de direito, com independência do poder judiciário e modernização das Forças Armadas sob o controle civil.
As políticas publicas têm que buscar fornecer as ferramentas necessárias para melhorar a vida das pessoas que vivem em situação de pobreza, e que constituem a maioria de população da Guiné-Bissau. Isso significa que os investimentos sociais em áreas como a saúde e educação não devem mais serem negligenciados. A proporção do (embora limitado) orçamento do Estado  que é destinada aos gastos com saúde e educação deve ser aumentada consideravelmente para assegurar oportunidades concretas de desenvolvimento. Esse propósito pode ser atingido através da transferência de fundos de sectores menos prioritários, como gastos militares, que não sejam essenciais ao gozo dos direitos. Tal balanço de gastos é de obrigação legal do Estado, sob vários tratados, como o Pacto Internacionais de Direitos Económicos, Sociais e Culturais e o Comité sobre os Direitos da Criança. A Guiné-Bissau deve utilizar o “máximo de recursos disponíveis” na realização dos direitos económicos e sociais, como a saúde e a educação, Em última instância, o país não pode desenvolver-se sem investir no seu bem mais vital: a sua população.
Também deve-se prestar particular atenção ao sector económico majoritário da agricultura, do qual a maioria da população depende para as suas vidas. Ainda constata-se uma produtividade extremamente baixa em agricultura e a dependência da monocultura (a castanha de caju), o que cria um grande risco de insegurança alimentar, e até fome, se a colheita falhar ou o preço de mercado baixar. Apesar do nível de produção do sector agrícola, a produção local é insuficiente para alcançar as exigências nacionais devido a vários factores, incluindo infraestruturas de transporte precárias, um sistema de mercado informal subdesenvolvido, falta de acesso ao crédito, insumos agrícolas e equipamentos para irrigação. Para superar o alto nível de insegurança alimentar e o flagelo da má nutrição no país, é crucial dar soluções a esses desafios e a dependência da colheita da castanha de caju.
O Estado deve reforçar o investimento na agricultura e economia rural para aumentar a produtividade. Esse sector pode ser um motor do crescimento sustentável da economia, porém isso não pode acontecer sem o reforço do desenvolvimento da infraestrutura agrícola e rural, o que também poderia contribuir para aumento da capacidade para a produtividade, melhorando condições de vida e a crescente segurança alimentar.
Enquanto o desenvolvimento de infraestruturas é essencial, a sustentabilidade ambiental deve ser o objetivo. Na Guiné-Bissau, os recursos florestais e a pesca estão em risco de esgotar. Outras medidas, mais adequadas, devem ser adoptadas para assegurar a preservação dos recursos naturais para as gerações futuras e cuidar da degradação do meio ambiente. Ademais, as autoridades devem tomar medidas urgentes para evitar o esgotamento sistemático dos recursos florestais e de pesca por actos de corrupção, atualmente ocorrendo com impunidade. Tais actos devem ser prevenidos e investigados em todos os níveis. Os recursos naturais do país pertencem legalmente a toda população da Guiné-Bissau, e devem fornecer comida e condições de trabalho à população por muitas gerações futuras. Aquelas pessoas que encontrem-se esgotando esses bens para o seu próprio lucro, em detrimento do futuro do país, devem ser responsabilizados enquanto uma prioridade para o país.

Senhoras e senhores
Eu gostaria de aproveitar esta oportunidade para lançar um forte chamado à comunidade internacional para continuar e reforçar a assistência internacional e cooperação para o beneficio do povo da Guiné-Bissau. Tendo em conta a grave situação de pobreza na Guiné-Bissau, todos os Estados que estejam em condições de apoiar, devem fazê-lo através de assistências financeira e capacitação técnica. A recente situação política colocou isso em risco, mas a comunidade internacional deve redobrar esforços para assegurar que o povo da Guiné-Bissau, tão necessitado, não seja mais penalizado pelos actos das elites políticas e militares.
Um grande esforço deve ser feito no sentido de garantir, em paralelo com ajuda dada para reerguer as instituições do Estado, que as organizações da sociedade civil continuem a receber a assistência que precisam. Apoiar e favorecer as organizações da sociedade civil ativas no país é uma forma de garantir o controle efetivo aos cidadãos e canalizar de forma adequada os recursos aos segmentos mais pobres de população. Apesar de todos os obstáculos, mutas organizações da sociedade civil são muito efectivas em assistir e construir o sustento e capacidades das pessoas que conseguem alcançar, frequentemente com projetos inovadores. Recursos adicionais são necessários para permitir que essas organizações aumentem seu impacto, cobertura e apoio e a transição de micro projetos para uma cobertura abrangente.

Senhoras e senhores,
Por fim, eu acredito que as recomendações que fiz hoje não vão apenas ajudar a reduzir a pobreza e estimular o desenvolvimento sustentável e o gozo dos direitos humanos na Guiné-Bissau de maneira mais efectiva, mas também diminuirão consideravelmente o potencial de futuras tensões e conflitos. Se a pobreza e a desigualdade de género não forem tratadas como uma questão prioritária, e a impunidade sistemática não for combatida, as oportunidades para o desenvolvimento significativo e a coesão social serão ameaçadas.
Se as autoridades, incluindo as elites políticas e militares, não priorizarem a construção da nação e respeito pelos direitos humanos em detrimento de ganhos pessoais, irão inevitavelmente desenvolver um aumento do ressentimento por parte da maioria da população, impedindo a consolidação da paz, estabilidade política e desenvolvimento. 
E vou terminar, reiterando o meu compromisso de continuar o diálogo iniciado nesta visita.  Eu gostaria de mais uma vez agradecer ao Governo da Guiné-Bissau pela sua excelente cooperação durante a minha visita. Espero poder continuar a trabalhar com o Governo num espírito de colaboração para a implementação das recomendações.